O economista João Manoel Pinho de Mello, diretor de Organização do Sistema Financeiro e de Resolução do Banco Central, está à frente das principais inovações que estão sendo implementadas na área bancária no País, como o Pix e o chamado open banking, consolidadas na Agenda BC# (lê-se BC hash). Ele é responsável também por acompanhar com lupa a atuação das fintechs – os novos empreendimentos de crédito e de pagamentos que estão se multiplicando por aí e aumentando a concorrência no setor – para garantir segurança e confiabilidade ao sistema.
Nesta entrevista ao Estadão, Pinho de Mello faz uma avaliação do impacto dessas mudanças no mercado financeiro e diz que o objetivo final é que os cidadãos e as empresas tenham acesso a serviços de pagamentos eficientes e baratos, a crédito com juros mais baixos e a produtos de investimento de alta rentabilidade, para potencializar a capacidade de poupança da população, especialmente nas faixas de renda mais baixas, que hoje têm poucas opções para aplicar o pouco dinheiro que eventualmente lhes sobra.
Ele também responde às críticas dos bancos contra o que consideram como “assimetria regulatória” das fintechs em relação às obrigações que têm de cumprir. Segundo Pinho de Mello, tudo isso vai mudar de forma considerável o perfil do sistema financeiro no País. “Eu não sei como vai ser (dentro de cinco ou dez anos), mas será uma coisa muito diferente do que é hoje”, afirma.
Nos últimos anos, o ambiente no sistema financeiro do País vem mudando muito, em ritmo acelerado. Houve a reformulação do sistema de pagamentos, em 2013, a entrada de novas instituições no mercado, a partir da regulamentação das fintechs de crédito, em 2018, o lançamento do Pix em 2020 e agora está sendo implementado o chamado open banking, que prevê o compartilhamento de dados de clientes entre os bancos. Como o sr. avalia os resultados alcançados até agora com tudo isso?
Sob qualquer métrica, a avaliação é extremamente positiva e ela não é resultado só da agenda regulatória. Evidentemente, a agenda regulatória e de política pública é muito importante. Mas o resultado é positivo também pela capacidade que os agentes de mercado tiveram de se adaptar e de fazer essas entregas e competir de maneira eficiente. Agora, o sucesso da agenda tem de ser medido principalmente por coisas palpáveis para a população. Se nós olharmos para as métricas mais típicas, como a taxa de juro para o tomador, a gente observa que ela vem caindo ao longo do tempo. Não só os juros na ponta, que já se esperava que caíssem, porque a taxa básica caiu (em relação aos patamares históricos, apesar da alta recente), mas também o spread (diferença entre a taxa de captação dos bancos e a dos empréstimos), conforme os dados publicados pelo Banco Central no Relatório de Economia Bancária. As taxas das maquininhas de cartões também vêm caindo paulatinamente. Então, todas as coisas estão andando. O importante é que essa agenda seja constante e vá sempre na mesma direção, que é o que está ocorrendo há cinco ou seis anos.
Com o aumento da concorrência no setor, houve também uma redução na concentração bancária. Como o sr. vê essa questão?
O pessoal olha muito essa métrica e nós já estamos há alguns anos realizando um trabalho de esclarecimento sobre a sua importância. Agora, a concentração diminui de forma lenta. É muito difícil, quase sem precedentes, ela aumentar ou diminuir rapidamente. Mas o importante não é se tem quatro ou cinco bancos no País e se eles têm 70% ou 80% do mercado. O importante é se a taxa de juros é baixa na ponta, se os bancos estão conseguindo dar crédito para o cidadão, para o consumidor dos serviços de pagamentos. Hoje, há mais competição no mercado, melhores serviços e serviços mais baratos, tanto que aqueles que não tinham acesso ao sistema estão passando a ter. Você pode chamar isso de o segundo passo da grande normalização da intermediação financeira no Brasil. O primeiro se deu com a estabilização, lá atrás, e o segundo vem dessa agenda de eficiência, que está sendo implementada desde 2016, fruto do trabalho de várias administrações e certamente desta gestão.
De que forma essas mudanças estão levando a uma maior “bancarização” da população?
O termo bancarização é até um pouco impreciso, porque não é só ter conta em banco, mas ter algum acesso a serviços de pagamento, serviços financeiros, por preços razoáveis, principalmente os produtos de pessoa física, e ao crédito, com taxas de juros menores, como eu falei há pouco. Também inclui maior acesso de empresas médias e pequenas ao mercado de capitais, além de mais interiorização da intermediação financeira. Pode ser por meio de banco, de instituição de pagamento, de cooperativa de crédito. O fomento ao cooperativismo de crédito, que é muito importante como veículo de acesso e de competição, em especial nas cidades médias e pequenas, é algo muito presente nesta administração do Banco Central. Muitas vezes, a gente fica com o olhar um pouco enviesado pelo que acontece nas cidades grandes, mas você tem hoje uma efervescência de cooperativas de crédito servindo principalmente a pessoas jurídicas de pequeno e médio portes em cidades pequenas. Então, essa é uma agenda para ampliar a concessão de crédito e diminuir as barreiras entre os que já estão no mercado e os que não estão, por meio do cadastro positivo, que dá mais informação sobre os cidadãos e as empresas para todo mundo. Com isso, a fintech e a cooperativa de crédito conseguem saber melhor quem você é. Mas tudo isso culmina com serviços e juros baratos e inclusão.
O sr. diz que a inclusão vai além da conta em banco e se estende aos meios de pagamento. Como isso contribui para ampliar o acesso aos serviços financeiros?
Se você pegar o público mais frágil, o primeiro contato que eles têm com qualquer forma de transação financeira geralmente é pagamento. Isso não é só no Brasil, mas na maioria dos países emergentes. Na China, isso aconteceu por meio das mídias sociais, com o WeChat e o Alipay. O primeiro contato do indivíduo com tecnologia é pela mídia social e eles viram que poderiam usar essas plataformas em que as pessoas estão conectadas para elas poderem fazer pagamentos. O WeChat e o Alipay começaram a perceber também que o cara deixa um pouquinho de dinheiro ali todo mês, porque tem de carregar uma conta pré-paga para fazer os pagamentos e sempre sobra alguma coisa, R$ 50 que sejam. Aí, com o avanço da tecnologia e o custo de transação caindo, eles se deram conta de que valia a pena oferecer aplicações como o Tesouro Direto no Brasil, para o pessoal aplicar esses R$ 50, e passaram a vender produtos financeiros. Começaram a aprender os pagamentos que o cara faz, quanto tem aplicado, os seus hábitos, e viram também que dava para dar R$ 20 de crédito para ele. Na hora que isso acontece, é um arraso, porque você inclui uma população que em geral não tinha acesso a crédito.
O que isso tem a ver com o que está acontecendo no Brasil?
No Brasil, a estrada foi meio diferente, mas com similaridades. No Brasil, o primeiro contato de microempreendedores individuais, dos informais, com algum tipo de intermediação financeira que não seja dinheiro vivo é com a maquininha, fruto da diminuição do preço da maquininha e do que o sujeito paga para fazer a transação. Com o avanço da tecnologia e com a agenda regulatória dizendo “olha, precisa ter competição nesse mercado, não pode ser verticalizado como era até o começo dos anos 2010”, o acesso aos meios de pagamento se ampliou.
O sr. pode dar um dado concreto de como as mudanças no sistema de pagamentos ampliou o acesso aos serviços financeiros?
Tem uns números bacanas. Até saiu um número outro dia por aí, mas não era muito preciso. Vou dar um número preciso. Se você pegar pagamento, só para ilustrar como pagamento é inclusivo, a gente tem desde o começo do Pix algo próximo a 52 milhões de usuários, só pessoas físicas, diferentes CPFs, que em algum momento fizeram um Pix. Destes, 17 milhões nunca tinham feito uma TED antes. Não sei por quê saiu que eram 11 milhões, mas são 17 milhões. Muitos não estavam dentro do sistema. Quem oferece o pagamento não é o Banco Central. São os bancos, as instituições financeiras. O Banco Central oferece a infraestrutura, que é amigável, eficiente, barata – na verdade, é de graça para pessoa física – e os indivíduos começam a usar e a entrar em contato com o sistema financeiro e a intermediação, o sistema de pagamentos. Pense no sujeito que vive em outro lugar e remete R$ R$ 50 ou R$ 100 por mês para a família. Se você cobrar R$ 10 por uma TED, parece que o negócio não se inviabiliza, mas ele está deixando muito para um serviço que não custa tanto. Esse é o primeiro passo. Em um, dois, três, quatro anos, a inclusão por meio do sistema de pagamento vai chegar no crédito e na oportunidade de investir o pouco dinheiro que a pessoa tem.
Como vai se dar o investimento pelo Pix?
Parte da população que tem uma sobra de poupança – e sobrou algum dinheiro com o auxílio emergencial – não tinha acesso a um instrumento de investimento com rentabilidade alta. Tinha só a poupança. Se o sujeito tivesse de pagar R$ 5 ou R$ 10 por uma TED para aplicar o dinheiro, “comeria” todo o retorno que ele teria em três anos com aquilo. Essa foi a beleza do WeChat e do Alipay na China e a beleza do Pix aqui. Com o Pix, ficou viável investir R$ 50 em qualquer lugar. Há o problema de suitability, como gente diz, de oferecer o instrumento financeiro adequado a cada pessoa. É importante que as pessoas entendam os instrumentos de investimento. Mas isso não é razão para a gente não popularizar o acesso a instrumentos de investimento. Por que só o pessoal que tem mais dinheiro pode fazer investimentos que deem retorno alto? Talvez haja investimentos adequados que dão retornos mais altos para a população de modo geral. Isso incentiva a poupança, é meio que tudo de bom. Só que, para viabilizar isso para valores muito baixos, era preciso que o custo de transação fosse muito baixo, e foi o que o que aconteceu com o Pix.
Além da questão dos investimentos, quais outras funcionalidades do Pix estão no pipeline?
Tem um monte. Vou lhe dizer algumas. Ao longo do terceiro trimestre, vão entrar em operação todas as funcionalidades do Pix. Já entraram algumas e estão entrando outras, como a que gente chama de Pix Cobrança. Basicamente, o Pix Cobrança oferece funcionalidades iguais às do boleto bancário. Você pode agendar, calcular automaticamente a mora e a multa quando for o caso e pagar antes ou depois da data de vencimento. Isso é importante. Pense no comércio online. O boleto é o instrumento mais usado no comércio online. Temos de lembrar que nem todo mundo, principalmente os mais frágeis, tem cartão de crédito – e o uso do cartão de débito é muito restrito na internet, por razões de segurança. Só que o boleto leva dois dias para compensar. Você compra um ventilador online e se não tem cartão de crédito o estabelecimento comercial que está lhe vendendo vai ter de separar aquela mercadoria, sem saber se vai vender mesmo ou não, enquanto aguarda a confirmação do pagamento. O Pix Cobrança melhora muito a logística dele e a sua experiência como pagador, porque você vai receber a mercadoria mais cedo. É uma coisa de acesso e de inclusão social. Quando você está no desktop ou no laptop, é uma maravilha. Você vai para a área de check out do site, aparece um QR Code na tela e você só escaneia. Não precisa colocar número de cartão, não tem problema de autorização, nada. Tendo saldo na conta ou limite no cheque especial, a confirmação da compra sai na hora. Isso já está substituindo boleto à beça.
O que mais está no prelo para o Pix?
No terceiro trimestre, vamos lançar o Pix Saque e o Pix Troco. O que é isso? O Banco Central vai prover a infraestrutura regulatória para você poder fazer saque e pegar troco no comércio varejista. Se você for no supermercado, fizer uma compra de R$ 100 e estiver precisando de dinheiro, você poderá fazer um Pix de R$ 150 e o sistema vai reconhecer automaticamente que R$ 100 são para pagar a conta, até porque tem tributo que incide sobre a compra de supermercado, e R$ 50 são saque, e vai poder tirar o dinheiro na hora no estabelecimento. Isso tudo é voluntário, evidentemente. Os comerciantes vão poder, se eles quiserem, oferecer o serviço de saque mesmo. Você não vai precisar nem comprar nada. Você vai lá, faz um Pix para o estabelecimento comercial, o lojista abre o caixa e lhe dá o dinheiro. Numa cidade do interior, numa cidade pequena de 5 mil habitantes, que não tem agência bancária nem caixa eletrônico e o sujeito tem de andar 20 ou 30 km para sacar dinheiro, ele vai poder fazer o saque num estabelecimento comercial, que muitas vezes tem acesso à internet. Mesmo em São Paulo, que está cheia de caixa eletrônico, você poderá, se você não estiver perto de um, sacar o dinheiro quando for comprar alguma coisa.
No quarto trimestre, vai entrar uma funcionalidade que vai ser muito legal, chamada Pix Offline. O que é o Pix Offline? Às vezes, você está num lugar em que não tem acesso à internet. No Pix Offline, mesmo sem acesso à internet, você vai conseguir fazer um Pix. Isso vai valer tanto para o pagador como para quem recebe. Pense no pagamento do pedágio. Você tem o tag, está offline. Vai ser algo parecido. Na hora que você ficar offline, o banco ou outra instituição de pagamento vai dizer quanto tinha na conta e carregar isso no seu aplicativo. Essa informação será carregada automaticamente e ficará disponível mesmo quando você estiver desconectado.
Em paralelo a tudo isso, tem ainda o open banking, que vai aprofundar ainda mais as mudanças no sistema. Qual é, afinal, o objetivo do open banking? Como vai funcionar mesmo o open banking?
O open banking vai permitir que as pessoas tenham mais acesso a crédito e a produtos financeiros utilizando os seus dados pessoais ou empresariais. Por exemplo: eu, sou cliente do banco A. O banco A tem todo o meu histórico de pagamentos, de crédito e de investimentos. Agora, imagine que tem a fintech B. Embora a fintech B tenha algumas informações minhas, dos bureaux de crédito, como Serasa e outros, a quantidade de informação que ela tem sobre mim é muito menor do que a do banco A. Então, o open banking vai democratizar a informação. Com o consentimento do cliente, a fintech B poderá usar esse conjunto de informações que o banco A tem sobre você, para poder oferecer condições financeiras mais favoráveis. Essa democratização de informação diminui o risco de conceder crédito, porque os credores vão saber mais de todo mundo, e aumenta a competição no sistema.
Hoje, se você é um bom cliente e recebe uma oferta de crédito da fintech B, o banco A vai reagir e lhe oferecer termos melhores. No caso de crédito imobiliário e de veículos, se você for um bom cliente, o seu gerente vai “casar” a oferta na hora. Mas, se você for um mau cliente, que já deixou de pagar dívidas e é encrenqueiro, o banco A vai deixar a fintech B levá-lo. Com isso, quem está entrando no mercado e quer disputar a clientela, vai pegar os piores clientes. Isso dificulta muito a competição, inclusive para quem já está no mercado. Os outros bancos também não têm estímulo para “roubá-lo” do banco A, porque sabem que os clientes que eles conseguirão “roubar”, no bom sentido, serão, em geral, os piores clientes.
Em que pé está o open banking hoje?
O open banking é um projeto de enorme envergadura e de complexidade tecnológica operacional, mas está seguindo a agenda que foi antecipada. A primeira fase do open banking, que é a de compartilhamento de dados cadastrais, superimportante para a competição, já foi. Estava falando esses dias com o pessoal do open banking no Reino Unido e eles disseram que uma coisa da qual as fintechs reclamam lá é que não têm os endereços e os dados cadastrais das pessoas, que os bancos têm. Aqui, a gente começou com isso e eles vão implantar no Reino Unido também. Agora, no dia 15 de julho teremos a fase 2 do open banking, em 30 de agosto, a 3, e em novembro, a 4. Pode haver algum soft opening de uma coisa ou outra, porque a gente vai aprendendo a respeito das dificuldades operacionais no caminho, mas o cronograma é este. Claro que tem o processo todo de educação e de aprendizado do cliente, o esclarecimento em relação ao consentimento. O consentimento é importante, porque você vai compartilhar suas informações. Por isso, ele tem de ser específico. Não vai ser só entrar no formulário, ticar um item e pronto. Para cada instituição você vai ter de dar um novo consentimento. Não pode ser uma coisa só pró-forma. Mas também não pode ser um negócio que demora uma hora para você dar todos os consentimentos, porque pouca gente vai aderir. São essas questões operacionais, feitas pelo mercado, com o monitoramento e a supervisão do Banco Central, que estão sendo ajustadas agora. É importante que um projeto desta envergadura seja lançado de forma sólida do ponto de vista operacional. Não pode dar errado, porque estamos lidando com dados pessoais. A gente tem pressa, mas não quer afobamento.
O sr. fala que não quer “afobamento” na implantação dessas novidades todas, mas os executivos dos bancos estão questionando muito o ritmo das mudanças. Eles dizem que, na reformulação do sistema de pagamentos, em 2013, as mudanças foram feitas de forma mais cautelosa, com tempo para testar tudo antes. A implantação disso tudo não está rápida demais? Como o sr. encara isso?
Eu encaro com muita naturalidade. Acredito que o exemplo do Pix é o melhor. O Pix é um sucesso porque tem muitos autores. Certamente, o Banco Central ter ofertado uma infraestrutura de liquidação eficiente, uma estrutura de identificação da chave Pix, um arcabouço regulatório sólido, ajudou muito. Mas o Pix não teria saído se não fosse a competência dos bancos, das instituições de pagamento, de embarcar numa tecnologia nova e oferece isso para os clientes de maneira muito bem-sucedida. O Pix mostra a enorme capacidade de entrega que as contrapartes reguladas têm. Dito isso, a gente precisa levar em conta que, em relação a 2013, o mundo hoje é mais rápido. As demandas da sociedade são mais rápidas também. Então, é natural que tudo esteja um pouco mais rápido. Agora, em vários projetos o cronograma foi ajustado e a gente está sempre aberto ao diálogo constante com as contrapartes privadas para parametrizar os prazos. O Pix foi construído numa governança de coparticipação. Há o Fórum Pix, no qual todas as novas funcionalidades são previamente discutidas com o mercado, com os ofertantes, são acordadas e só depois, implementadas. Em algum momento, a gente olha e diz: “Aquele prazo que a gente pensou lá atrás não vai dar. A gente vai ter de estender isso aqui”. No caso do Pix, nós estendemos vários prazos. Em todos os projetos de grande envergadura o Banco Central está sempre aberto ao diálogo e vai promover os ajustes que forem necessários.
No caso do open banking, o Banco Central também está disposto a rever os prazos de implantação, se for preciso?
Isso vale para tudo, inclusive para o open banking. O prazo da nossa agenda de registro de recebíveis do cartão de crédito, por exemplo, foi ajustado duas vezes. Muitas vezes, a gente recebe informações de desafios tecnológicos que nós não tínhamos antes. O próprio mercado vai descobrindo os desafios. Esse diálogo é constante. Nós somos responsáveis aqui. De modo mais genérico, se você pegar os objetivos mais amplos do Banco Central, a gente alcançou a manutenção do poder de compra da moeda e agora está adotando medidas para garantir a eficiência do sistema financeiro. A sociedade brasileira foi bem sucedida em construir uma moeda estável e em construir um sistema de pagamentos superestável, que sobreviveu à grande crise financeira de 2008, à grande recessão de 2014 a 2016, ao choque da covid. Depois que você consegue isso, é natural que a sociedade comece a demandar eficiência de forma cada vez mais forte. O nosso papel é garantir a estabilidade e entregar essa agenda de eficiência, com muita segurança e muito diálogo. O diálogo é o mais importante para fazer ajustes finos que sejam necessários.
O pessoal dos bancos está criticando também a não existência de limite máximo para o Pix, por colocar em risco a segurança pessoal do portador do celular, em caso de ele ser alvo de assaltos. Isso não é algo preocupante?
A administração de limites do Pix é algo que a gente segue muito de perto. Só para esclarecer, o PIX tem limites, sim. Eles são estabelecidos pelas instituições financeiras conforme os limites de meios de pagamentos equivalentes. Se você vive em São Paulo e aparece uma transação de débito num bar em Porto Alegre às 2h da manhã, alguém tentando fazer uma transação no seu cartão de débito, o banco emissor não vai transitar aquela informação, porque há um limite de débito. Esse limite máximo do débito, o do crédito, o da TED, os diferentes limites balizam os limites máximos que os bancos impõem para o Pix. Se você tem um limite de R$ 10 mil na TED, vai ter um limite de R$ 10 mil para transferências também no Pix. No segundo trimestre deste ano foi colocada a gestão de limites nos aplicativos. É uma funcionalidade que foi colocada de modo regulatório. Agora, os próprios participantes podem administrar o seu limite. Se o seu banco colocou um limite de transferência no Pix baseado no limite da TED, você mesmo pode entrar no aplicativo e diminuir o limite do Pix, por razão de segurança. A gestão dos limites é algo muito importante para o instrumento. Nos primeiros seis meses, nós entramos com limites bem mais baixos do que os estabelecidos em meios de pagamentos equivalentes, a partir de uma sugestão feita no grupo de trabalho de segurança do Fórum Pix, no qual os bancos grandes aportam uma inteligência muito importante. Eles pediram que, no lançamento do Pix, os limites não fossem escolhidos pelos usuários, mas pelas instituições participantes, para ver o que iria acontecer. Mas, se você olhar o que teve de problema no Pix e comparar com outros instrumentos, vai ver que até agora os problemas de segurança não foram tão relevantes.
Outro ponto que o pessoal dos grandes bancos está criticando é o compartilhamento dos limites de crédito de cada cliente, que é algo que eles prezam muito, no open banking. Eles dizem que isso é resultado de um aprendizado que cada banco alcançou ao longo de décadas e questionam o compartilhamento de todo esse conhecimento de graça com quem está chegando agora. O que o sr. tem a dizer sobre isso?
É importante seguir o princípio. O que é dado pessoal, ou seja, as transações que você fez, o número de vezes que tomou crédito, se pagou ou não as suas dívidas, é propriedade do indivíduo, conforme a Lei Geral de Proteção de Dados, e ele tem o direito, com seu consentimento, de transitá-lo como quiser. O open banking vai fazer com que esse trânsito seja organizado, com segurança no consentimento, e que seja fácil. Agora, parece óbvio que o algoritmo, a econometria de pegar esses dados, misturá-los e produzir um score de crédito, é propriedade do banco, da instituição de pagamento, de quem quer que seja. Eu posso entrar no home banking e tirar uma foto do meu limite de crédito, que vem inclusive com o horário da consulta, e mandar para outro banco. Então, parece claro que essa informação, de certa forma, já é pública. Posso compartilhá-la, se quiser. Para mim, levando isso em conta, parece uma informação que deve ser compartilhada no open banking, até para isso ser feito com mais segurança, porque ela já pode ser compartilhada de modo desorganizado. Eu não participo diretamente da convenção do open banking. Não sei o detalhe do limite, se vai ser incluído ou não. Mas, se quisesse ter um princípio, me parece que deveria ser possível compartilhar essas informações.
Considerando todas essas mudanças, há uma questão de segurança cibernética, relacionada a esse compartilhamento de dados. Na hora que esses dados forem compartilhados de forma mais intensa, até institucional, esse risco vai se potencializar, talvez não tanto no caso das instituições tradicionais, que já têm uma infraestrutura considerável de proteção de dados, mas principalmente no caso dos entrantes, que vão receber as informações. Que medidas o Banco Central está tomando para dar maior segurança para o cliente?
Ao trazer para a Agenda BC# a proteção cibernética e a proteção a dados individuais, colocá-la no cerne do projeto, o Banco Central está mostrando que compreende a importância estratégica da questão. Várias jurisdições, não só o Brasil, reconhecem que há riscos envolvidos na transição de dados. Por isso, é importante que a gente faça o compartilhamento de informações pelos canais oficiais de modo organizado. É muito melhor que ocorra de modo organizado, num ambiente regulatório sólido, do que fazer o compartilhamento de forma desorganizada, com pouco monitoramento. Boa parte dos desafios operacionais do open banking se localiza precisamente no processo de obtenção de consentimento dos clientes e em como garantir que os dados transitem de forma segura. Além disso, para participar do open banking, você tem de estar no perímetro regulatório do Banco Central, ser uma instituição autorizada e supervisionada pelo Banco Central. Por que? Porque nós controlamos a entrada no sistema. Tem um procedimento, checagem de capacidade econômico-financeira, capacidade técnica, reputação ilibada, para dar segurança ao público de que essa nova instituição, embora ele não a conheça, passou pelo crivo e pelo filtro da autorização. Esse processo tem de ser eficiente, tem de ser desburocratizado, mas precisa existir. E nós impomos medidas sancionadoras administrativas para quem se comporta mal, com responsabilização de dirigentes.
No caso do arranjo de pagamento do WhatsApp, autorizado neste ano, muita gente disse “não, mas isso é intromissão do Banco Central, por que não vai deixar, por que vai barrar o WhatsApp e tal”. No fim, autorizamos a realização de pagamentos pelo WhatsApp em tempo recorde, mas nós tínhamos de ver como os dados iriam transitar e garantir a segurança das informações. É um ambiente novo no sistema financeiro, com potencial enorme de criar valor para os clientes, mas nós precisávamos saber quem a gente vai responsabilizar se der algum problema, como é o consentimento, como os dados transitam, por onde transitam. Esse processo todo tem de ser bem estabelecido, porque a gente tem uma obrigação frente ao público de garantir a segurança dos arranjos de pagamento que são supervisionados pelo Banco Central.
Nas últimas semanas, principalmente depois dos últimos aportes de capital feitos em algumas fintechs, os executivos dos grandes bancos têm feito muitas críticas contra o que eles chamam de “assimetria regulatória” das fintechs em relação às obrigações que têm de cumprir. Como sr. vê essas críticas?
Eu encaro como sinal da efervescência e do sucesso dessa agenda. Essa efervescência e essa temperatura alta do debate, com opiniões que são dadas de um lado e de outro, sugere o êxito da estratégia que vem sendo levada a cabo há um bom tempo. Não haveria esse interesse todo se a gente não estivesse vendo um ambiente cada vez mais competitivo. Acho que para um sistema financeiro, um sistema de pagamentos, que atingiu plenamente o objetivo de estabilidade, como o brasileiro, você ter essa efervescência e não ficar no marasmo é um bom sinal. Você pode dizer que efervescência e muita excitação em sistema financeiro pode ser um sinal ruim, de problema na frente. Mas a gente tem um sistema financeiro, um sistema de pagamentos, extremamente sólido. Acredito que nós, como reguladores, temos de estar sempre abertos a ouvir as críticas, as opiniões do mercado, e se for o caso ajustar a regulamentação. Agora, eu acho que semântica é importante. Eu gosto do termo “proporcionalidade regulatória”. Se nós seguirmos o princípio de proporcionalidade, tudo se encaixa naturalmente. Quem criar mais risco, vai ter um ônus regulatório maior. Para algumas instituições, consideradas sistemicamente importantes, há, inclusive, princípios internacionais, do Acordo da Basileia, que têm de ser seguidos pelo Brasil. Essa adaptabilidade já está na regulação como ela é hoje, mas também pode ocorrer por novas regulamentações. Tenho certeza de que os grandes bancos, as instituições financeiras tradicionais, estão se adaptando e têm enorme capacidade de competir.
Em relação à regulação das fintechs, há algum ajuste no radar?
Sempre tem ajuste. Tem de lembrar que esse é um ambiente muito fluido, com um dinamismo muito grande. Então, a gente vai tomando decisões ao longo do tempo, para trazer o novo para dentro do ambiente. A legislação vai se adaptando e muitas vezes é construída de modo a ser autoadaptável. A carga regulatória das fintechs é mais baixa, porque elas impõem pouco risco ao sistema. Agora, se algumas fintechs ficarem grandes, começarem a impor risco, automaticamente a regulação vai subir de nível. A gente já tem diferentes segmentos regulatórios no sistema financeiro brasileiro. Claro que a gente monitora os riscos e diz “olha, você era pequeno e não impunha risco, mas, se o seu risco aumentar, a sua carga vai aumentar", porque a gente precisa cuidar da solidez do sistema financeiro.
Há uma consulta pública aberta, a Consulta Pública 78 do Banco Central, que trata do tema de capital em conglomerados nos quais existe uma instituição de pagamentos, como uma maquininha, e uma instituição financeira envolvidas e mesmo em casos de atores antigos que têm maquininha e financeira. No fundo, é só aceitar o fato de alguns desses novos atores começam a ficar grandes. De novo, a regulação é para tratar os iguais igualmente e os diferentes diferentemente, conforme o risco que possam impor ao sistema. É um princípio superbásico da regulamentação bancária, celebrado no Acordo da Basileia, que a gente segue aqui estritamente. A regulamentação vai se adaptando. É natural, conforme o risco for crescendo, você impor uma regulamentação adicional.
Em uma entrevista dada recentemente ao 'Estadão', o economista Ilan Goldfajn, ex-presidente do Banco Central, fez uma sugestão de estabelecer novos critérios para avaliar esse risco das fintechs no sistema, como o patrimônio, o volume de capital, a complexidade, operações interligadas e outras coisas do gênero, que não tem a ver alavangem das instituições. O que o sr. pensa dessa sugestão?
É uma boa sugestão. Inclusive, acredito que, se a gente pegar a Consulta Pública 78, alguns desses princípios, como de risco operacional, já estão lá. O resultado dela a gente não tem ainda. O Banco Central coletou as contribuições e tomará sua decisão quando estivermos prontos. Ainda precisa haver uma decisão da diretoria colegiada. Eu não sei prever qual decisão será tomada. Agora, do ponto de vista de princípio, isso já está na Consulta Pública 78. Esses riscos operacionais e de exposição que não são relacionados ao crédito já estão incorporados de uma forma ou de outra na regulação que temos. Não é estritamente só capital e alavancagem. Capital e alavancagem são componentes muito importantes, se não os mais importantes, do risco. A gente tem de prestar muita atenção nas instituições que captam depósitos junto ao público e operam com nível de alavancagem. É por isso que, no Acordo da Basileia, embora ele tenha várias dimensões, o cerne é o capital.
Para fechar esta entrevista sobre as mudanças que estão ocorrendo no sistema financeiro e as críticas dos bancos à regulação das fintechs, quais são os objetivos de tudo isso? Olhando para 5/10 anos, como o sr. vê o framework do sistema? Como vai ficar isso daí?
Eu não sei como vai ser, mas será uma coisa muito diferente do que é hoje. A quantidade de mudanças tecnológicas que há a gente não sabe nem de onde vem. A gente tem todo esse desafio de entrada de big techs em pagamentos e eventualmente em finanças. Os bancos tradicionais têm base de clientes. Eles podem alavancar e prestar outros serviços. Mas o objetivo, independentemente de onde está, é que os cidadãos e as empresas tenham acesso a serviços de pagamentos eficientes e baratos e hoje mandar dinheiro de um lado para o outro é muito barato. A tecnologia da coisa tem que ser muito barata. Que eles tenham acesso a crédito de modo seguro, adequado e barato, que tenham acesso a produtos de investimento, para poder potencializar a sua capacidade de poupança e gerar bem estar e riqueza, que sejam bem compreendidos. E inclusão para todos. Esse é o objetivo final. A agenda BC# tem uma série de ações com uma estratégia subjacente. Todas as ações vão neste sentido.