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06/07/2018

A Execução extrajudicial no SFH: Do decreto Lei nº 70/66 à Lei nº 9.514/97

Confira o artigo publicado pelo consultor jurídico da Abecip, José Antonio Cetraro, na Revista de Direito Imobiliário

No Sistema Financeiro da Habitação (SFH) dois instrumentos jurídicos de recuperação de crédito mediante procedimento extrajudicial notabilizaram os dispositivos legais que os criaram, ainda que se tratasse de normas legais destinadas ao desenvolvimento do crédito imobiliário, tendo como uma de suas premissas a celeridade na recuperação dos recursos aplicados.

Através do Decreto Lei nº 70/66 foram criadas as Associações de Poupança e Empréstimo (APE), ampliando a gama de agentes financeiros habilitados à captação de depósitos de poupança e sua aplicação em financiamentos habitacionais. Também por esse Decreto-Lei foi criada a cédula hipotecária como título representativo do crédito imobiliário garantido por hipoteca e destinado a facilitar a circulação desses ativos, como medida de estimulo à criação de um mercado secundário. E, por fim, esse dispositivo instituiu a execução extrajudicial das hipotecas geradas no SFH, como ferramenta alternativa à execução judicial pelas normas do Código de Processo Civil.

Vale lembrar que esse Decreto-Lei foi editado nos primeiros anos da implantação do SFH, criado pela Lei nº 4.380/64 juntamente com o Banco Nacional da Habitação (BNH), que à época não apenas tinha a função de normatizar e fiscalizar o Sistema, mas atuava diretamente na concessão de financiamentos a mutuários finais.

Há de se considerar o grande alcance social e econômico dos primeiros atos do regime político então instaurado no País, com reformas fundamentais no setor financeiro e imobiliário através da Lei nº 4.591/64 tratando das incorporações imobiliárias; da Lei nº 4.595/64 cuidando da regulamentação do mercado de capitais e a citada Lei nº 4.380/64, facilitando o acesso ao financiamento da moradia familiar, a partir das camadas sociais de menor renda, como medida essencial para combater um déficit habitacional crônico.

Não obstante, os anos que se seguiram revelaram o autoritarismo desse regime, produzindo uma legislação incompatível com o pleno Estado de Direito e suas liberdades e garantias individuais, restabelecidos apenas no final da década de oitenta com a promulgação da nova ordem constitucional de 1988. Assim, muitos dos dispositivos produzidos na vigência daquele regime haveriam de ser revistos ou mesmo removidos do nosso direito positivo, posto que denominados “entulho autoritário”.

Voltando aos financiamentos concedidos diretamente pelo BNH, devido às suas inconciliáveis funções de órgão central do Sistema e gestor de tal tipo de ativos, fez com que sua Diretoria editasse uma Resolução1 destinada a transferir aos Agentes Financeiros

1 RD nº 61/71

aqueles créditos, com elevado índice de inadimplemento. Aos cessionários coube a inglória missão de promover-lhes a execução, gerando um volume significativo de procedimentos extrajudiciais, muitas vezes envolvendo a quase totalidade de empreendimentos habitacionais.

A reação junto ao Judiciário foi inevitável e assim surgiram os questionamentos pela inconstitucionalidade do procedimento. Num primeiro momento em razão do texto da constituição de 1946, posteriormente à luz da Constituição de 1967, que tinham em comum a garantia de que “A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual”2. Com a nova ordem constitucional de 19883, os questionamentos do Decreto-Lei nº 70/66 passaram a ser motivados pelos princípios de que “ a propriedade atenderá a sua função social; a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;. ”, de modo a ser sustentada a não recepção daquele Decreto pela nova Constituição.

Como alternativa aos credores, foi editada a Lei nº 5.741/71 que estabeleceu rito especial para a execução judicial de créditos vinculados ao SFH. Apesar do propósito de conferir maior celeridade à recuperação dos créditos, a aplicação prática desse novo dispositivo gerou demandas intermináveis, com amplo questionamento sobre as questões contratuais, resultando na prática em deterioração da garantia.

Instado a decidir sobre a inconstitucionalidade do Decreto-Lei nº 70, o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou-a, seja perante os textos constitucionais de 1946 e 1967, como diante da constituição de 1988, fruto e decorrência da plena redemocratização do País. Todavia, apesar dos reiterados pronunciamentos do STF ao longo de mais de uma década sobre a constitucionalidade da execução extrajudicial de hipotecas pelo questionado Decreto-Lei, já sob o regime da repercussão geral criado em 2006, a Suprema Corte voltou a analisar o tema em 20104 em julgamento suspenso desde 2011.

De outra parte, a Lei nº 9.514/97, a exemplo do questionado Decreto-Lei, teve igualmente o propósito de estimular o desenvolvimento do mercado imobiliário, inclusive pela criação do Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI), caracterizado pela liberdade contratual e pela premissa básica de que os recursos aplicados devem ser efetivamente restituídos. Com o novo Sistema surge uma nova modalidade de captação de recursos: a securitização de recebíveis imobiliários e a criação de um novo título de crédito: os Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI). Tal como no Decreto-lei 70, novas instituições para atuar no SFI ao lado das instituições financeiras e as companhias securitizadoras. Mas, o que notabilizou a Lei nº 9.514/97 foi sem dúvida a criação da alienação fiduciária de bem imóvel em garantia e seu procedimento específico para recuperação de créditos por ela garantidos.

2 CF 1946: Art. 141, § 4º e CF 1967: Art. 150, § 4º

3 CF 1988: Art. 5º, XXIII, XXXV, LIV

4 RE nº 556.520 e 627.106

Há, de fato, semelhanças entre os ritos da execução extrajudicial da hipoteca e da alienação fiduciária, como a notificação do devedor e um prazo para purgação da mora, a realização de dois leilões e a intervenção do Judiciário para obter a desocupação do imóvel. Mas é a natureza jurídica de cada um desses institutos que estabelece os diferenciais básicos. Enquanto na hipoteca o devedor mantém a propriedade e posse do imóvel, sendo os leilões destinados à expropriação do bem hipotecado através de arrematação, na alienação fiduciária, em que se dá a alienação do imóvel ao credor em caráter resolúvel, fica reservada ao devedor tão somente a posse direta. Não purgada a mora, opera-se a consolidação da propriedade em nome do fiduciário. Nesse procedimento, os leilões destinam-se à recuperação do crédito com acertamento de valores junto ao fiduciante.

Mas, a despeito dos momentos históricos e políticos que separam esses dois dispositivos legais, ambos destinam-se a recuperar créditos com garantias específicas tomados por devedores que se tornaram inadimplentes, sem que a expropriação dependa do Judiciário, mas tão somente a desocupação do imóvel. Todavia, se na gênese do Decreto-Lei nº 70 está o autoritarismo e a inexistência do pleno processo legislativo, que foram determinantes para que se alegasse a sua ilegitimidade e afronta ao texto constitucional, a Lei nº 9.514/97 foi concebida na plenitude do Estado de Direito através da atuação direta do Legislativo, o que talvez justificaria um volume menor de questionamentos e alegações de inconstitucionalidade que foram sistematicamente repelidas no Judiciário. Apesar desses aspectos positivos na sua gênese legislativa, tal como ocorreu com o procedimento extrajudicial de execução da hipoteca, o relativo à alienação fiduciária igualmente tem sua constitucionalidade como tema de repercussão geral em recurso extraordinário no STF5.

Alinharam-se assim os procedimentos extrajudiciais na incerteza jurídica, que atua como fator de estímulo à sua judicialização. Seja o dispositivo da década de sessenta para a hipoteca como a norma inovadora da década de noventa para a alienação fiduciária, não obstante aplicados ao longo desse largo período, ainda não têm sua legitimidade reconhecida pela Corte Suprema a despeito das incontáveis relações jurídico-obrigacionais que estabeleceram. Ainda há de se considerar a evidente resistência aos procedimentos extrajudiciais apesar da flagrante impossibilidade de canalizar para o Judiciário a solução de todos os litígios.

Abstraídos os aspectos políticos e formais, trata-se de dispositivos legítimos aos fins a que se destinam. Concorrem para desafogar o Judiciário que tem absoluto controle sobre seus atos. A propósito, se a distribuição da justiça no País tradicionalmente é deficiente por força da morosidade crônica do Judiciário, impensável projetar o crescimento do mercado imobiliário caso a recuperação de créditos venha a depender exclusivamente de atuação judicial. Notadamente em se tratando de alienação fiduciária que hoje representa

5 RE nº 860.631/SP

a quase totalidade da garantia adotada no crédito imobiliário além de largamente utilizada em outras operações bancárias, comerciais e industriais.

Cabe lembrar que os procedimentos extrajudiciais envolvendo bens e garantias são tradicionais no nosso direito positivo. É o caso da venda de bens objeto de penhor6, da venda de unidades por inadimplemento em incorporação imobiliária7. Posteriormente o inventário, o arrolamento, a separação e o divórcio com a respectiva partilha8, e, ainda, a arbitragem9. Mais recentemente a retificação de área e a usucapião. Mas, na medida em que tais procedimentos são utilizados em larga escala, envolvendo instituições financeiras por estarem atrelados a Sistemas de Financiamento, tornam-se polêmicos e provocam a judicialização, notadamente quando envolvem uma questão sensível como o é a moradia própria É exatamente o caso da execução extrajudicial de hipotecas do SFH que vigora há mais de meio século sem uma definição no Judiciário, ora substituída pela alienação fiduciária, igualmente colocada no banco dos réus. A insegurança jurídica, a instabilidade da jurisprudência e a cultura da judicialização atuam para dificultar a célere e eficaz recuperação do crédito e a sua recolocação para que os Sistemas atuem de modo autossustentável, aumentado a oferta e reduzindo o custo do crédito imobiliário.

Fevereiro/2018

José Cetraro

advogado

6 art. 1.433, IV, do CC 2002 (art. 77, III, CC 1916)

7 Art. 63 lei 4.591/64

8 Lei 11.441/07

 

9 Lei no 9.307/96