O Plano Diretor Estratégico (PDE) de São Paulo de 2023 garante incentivos para empreendimentos que destinarem unidades para pessoas de baixa e média renda nas Zonas Especiais de Interesse Social. Ou seja, incorporadoras que construírem edifícios em regiões centrais e próximas a eixos de transporte têm direito a incentivos construtivos, desde que o prédio seja total ou parcialmente composto por Habitações de Interesse Social (HIS).
Em troca, estes empreendimentos se comprometem a destinar as unidades ou parte delas para a população que se enquadra em HIS 1 (famílias com renda de até R$ 4.236), HIS 2 (famílias com renda de R$ 8.472) ou HMP (Habitação de Mercado Popular) – com renda de até R$ 14.120.
Atores do setor imobiliário, entretanto, apontam uma falha neste sistema: depois que o imóvel era adquirido, nada impedia que o novo dono vendesse para alguém que não se enquadra nestas faixas de renda. Além de existir incorporadoras que declaravam unidades com este foco, mas omitiam isto na hora da venda.
Rafael Steinbruch, cofundador da Yuca, conta que muitas vezes o novo comprador nem sabia que se tratava de uma HIS. “Não existia uma regulamentação tão clara quanto à destinação do imóvel. Como deveria ser feita? Quem controlaria a entrega? Enfim, a iniciativa foi pensada com foco na venda, mas era impossível controlar a revenda”, argumenta Steinbruch.
Então, no dia 19 de janeiro de 2024, foi publicado o decreto Nº 63.130, que passou a permitir a compra destas unidades por qualquer pessoa, desde que ela se comprometa a alugá-las para o público que se encaixa nos requisitos para a moradia social.
Para ter este direito, o comprador precisa averbar na matrícula no imóvel a destinação original (HIS ou HMP) e se assegurar de que os locatários do bem se enquadrem na categoria do imóvel, via apresentação de certidão que comprove a renda deste novo morador.
“Enxergamos que a forma mais certeira de resguardar o objetivo da unidade é destiná-la à locação e realizar o controle de quem vai morar nele”, comenta Steinbruch. “Nos empreendimentos que gerenciamos, fazemos o acompanhamento constante. Se o locatário registrar um aumento na renda depois de 30 meses, ele precisará sair. E, assim, aquela unidade vai continuar abrigando a população de HIS por muitos anos”, pontua.
Mercado lucrativo
Atualmente, a Yuca está à frente de três projetos deste tipo, realizados em parceria com incorporadoras. São unidades de 26 a 30 m² na Vila Tolstoi, Santa Cecília e Santo Amaro. A análise dos locatários é realizada por observação do holerite e extrato bancário dos últimos seis meses.
A empresa determina que os pacotes, que incluem aluguel, IPTU e condomínio, não devem ultrapassar 40% da renda do topo da faixa HIS. O preço dos pacotes vai de R$ 1.880 a R$ 1.999 por mês.
“É uma demanda que todo mundo percebe que está reprimida, por isso os investidores focam tanto neste tipo de negócio”, avalia Marcos Túlio Campos, diretor de Incorporação da EBM Desenvolvimento Imobiliário. A empresa está desenvolvendo dois empreendimentos em São Paulo, um em Perdizes (Zona Oeste), e outro na Vila da Saúde (Zona Sul).
Ele conta que mais de 80% dos compradores do edifício em Perdizes são investidores de olho na renda do aluguel. “Temos o investidor tradicional, que visa a locação via Airbnb, e aquele que foca nas unidades HIS. No momento da venda, apresentamos ao comprador um contrato explicando que a locação deve ser destinada a este público. E eles assinam sem se incomodar, pois sabem que vai ter público”, comenta.
Os apartamentos de um ou dois quartos medem de 25 a 40 metros. “São unidades que serão alugadas para uma classe social que não conseguiria morar tão bem localizada. É uma iniciativa que traz as pessoas para mais perto do trabalho e do lazer”, avalia o executivo. “Desde que o investidor tenha a responsabilidade da locação, é uma medida que ajuda todo o setor”, avalia.
Aluguel não tão social
Os caminhos abertos pelo novo Plano Diretor para estimular a locação de habitações sociais em regiões centrais de São Paulo contrastam com a falta de diversidade de renda nestes locais. “Acham que as pessoas mais pobres estão sendo contempladas, mas isto não é verdade”, contesta Bianca Tavolari, urbanista e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
Bianca faz coro com urbanistas que defendem que a produção de HIS não está diminuindo os hiatos geográficos e de renda que existem na sociedade paulistana.
“Quando se fala de HIS, imagina-se algo parecido com o Minha Casa, Minha Vida, mas é diferente. Enquanto as construtoras recebem incentivos como a isenção do pagamento da outorga onerosa, o aumento do potencial construtivo e o aumento de gabarito, o público comprador ainda precisa de crédito, comprovação de renda e não tem juros menores”, indica.
No entanto, ela não culpa as construtoras pelo cenário. “A Prefeitura não indica ao mercado quantas unidades precisam ou quantas famílias devem ser beneficiadas. Então as empresas podem optar por construir unidades de interesse social ou não, e depois são elas que realizam esta fiscalização. E uma organização privada não consegue ter o mesmo nível de controle de um banco ou de um órgão público, por exemplo”, critica a urbanista.
“Além disso, a maioria destes empreendimentos mira no teto do HIS 2. Uma família com 5 pessoas que ganha R$ 8 mil reais é uma coisa, mas em grande parte dos casos trata-se apenas de um indivíduo com este rendimento que acaba usufruindo das unidades sociais. Dificilmente uma pessoa com este salário é considerada pobre no Brasil”, ilustra Bianca. “O mercado não está errado, mas se aproveita de uma falha do poder público para lucrar”.