*Alexandre J. Gomide e Roberta Resende
A situação que passo a narrar havia se tornado corriqueira nos últimos anos. Após aquisição de bem imóvel usado, o comprador, anos após a imissão na posse, surpreendia-se com uma decisão judicial decretando a ineficácia da alienação porque realizada em fraude à execução.
Isso porque o revogado Código de Processo Civil de 1973 determinava, no art. 593, inciso II, que é considerada fraude à execução quando, ao tempo da alienação, corria contra o devedor da demanda capaz de reduzi-lo à insolvência.
Daí a necessidade de ser realizada, sobretudo quando da aquisição de imóveis usados, criteriosa auditoria jurídica para verificar eventuais ações em curso em face do devedor. Ocorre que, ainda assim, mesmo realizada criteriosa "due diligence", muitas vezes o comprador era surpreendido com a decretação de fraude à execução porque, por exemplo, embora o imóvel fosse situado na cidade de São Paulo e o vendedor também residisse na mesma comarca, tramitava no Estado do Acre ação de execução de que não se tinha notícia, por não constar nas certidões pessoais do vendedor.
Em virtude de situações injustas como a descrita acima, o sistema jurídico brasileiro passou a olhar com maior atenção ao terceiro adquirente de boa-fé, ou seja, o comprador que, embora tenha adotado cautelas suficientes para aquisição do bem, ainda assim via-se diante da possibilidade de perder o imóvel adquirido.
Nesse sentido, os tribunais brasileiros passaram a prestigiar em suas decisões a boa-fé do terceiro adquirente, o que culminaria em 2009 com a edição da súmula 375 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), firmando entendimento de que o reconhecimento da fraude à execução dependeria do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente.
Não tivesse a penhora gravada na matrícula do bem em negociação, presumia-se a boa-fé do adquirente. Essa presunção, relativa, diga-se, cairia por terra caso ficasse provado que, embora não registrada na matrícula a penhora, o adquirente dela tinha ciência, mesmo sem o gravame na matrícula.
Em progressiva depuração do tema, o passo seguinte foi a consolidação do entendimento sumular na Lei nº 13.097, de 2015, a qual declara a eficácia dos negócios jurídicos que tenham por objeto bem imóvel sobre o qual recaia penhora não registrada na matrícula ou cujo proprietário tenha ajuizada contra si ação de execução em fase de cumprimento de sentença não averbada na matrícula do imóvel. Em clara proteção ao terceiro adquirente de boa-fé, a referida lei determina que a ele não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção.
Pois bem. Com a entrada em vigor do texto do novo Código de Processo Civil, a Lei 13.105/2015, voltou a pairar sobre o tema danosa controvérsia. Da leitura do artigo 792 do novo código, vê-se que os incisos I, II e III estão rigorosamente dentro da sistemática consolidada pela Lei 13.097, na medida em que se referem expressamente à necessidade de registros e averbações para a caracterização da fraude.
A dificuldade encontra-se no inciso IV, que recupera a ideia do Código de Processo Civil de 1973, de que caracteriza a fraude à execução a alienação ou oneração ocorrida quando tramitava contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência. O inciso IV não diz "demanda que esteja averbada na matrícula", mas apenas "ação em curso".
Aparentemente, a redação do inciso IV pode pôr a perder um sistema coeso, lenta e cuidadosamente construído conjuntamente pela doutrina, jurisprudência e legisladores, desde o advento do Código Civil até a promulgação da Lei 13.097/2015: a proteção do terceiro adquirente de boa-fé.
Teria ocorrido um "cochilo" do legislador, que por tradição teria repetido no inciso IV do artigo 792 do novo CPC a vetusta fórmula pela qual se caracterizou outrora a fraude à execução no direito brasileiro?
Caso a interpretação da doutrina e jurisprudência, com fundamento no art. 792, IV, do novo Código de Processo Civil determine que uma simples ação em curso possa caracterizar a fraude à execução, ainda que não esteja averbada na matrícula do imóvel, voltaríamos à injusta situação narrada no início deste artigo.
O entendimento acerca da fraude à execução consolidado na Lei 13.097, protegendo o terceiro adquirente de boa-fé, repita-se, não foi fruto do acaso, tampouco do açodamento. Pelo contrário, nasceu do trabalho diuturno dos operadores do direito, de lento amadurecimento do tema no seio da comunidade jurídica, e tramitou paralelamente ao novo CPC - notem a proximidade da data de suas publicações, quase contemporâneas.
Nesse cenário, não se poderia admitir um retorno ao status quo ante, sem justificativa. As discussões que fundamentaram a Lei nº 13.097/2015 são recentes, expressam entendimento amplamente debatido, e como tal, merecem ser prestigiadas. Em nome da segurança jurídica para aquisição de imóveis, esperamos que a interpretação a ser dada ao art. 792, inciso IV, do novo CPC seja pela proteção do terceiro adquirente de boa-fé.
*Alexandre Junqueira Gomide e Roberta Resende são, respectivamente sócio e advogada de Junqueira Gomide & Guedes Advogados