Por Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza
Há determinados temas que são tão claros que sequer exigem fundamentação extensa. O recente provimento do CNJ contém um dispositivo tão absurdo, que merece apenas brevíssimos comentários.
Dispõe o § 3º do art. 320, I, do provimento 188, de 4/12/24:
"A superveniência de ordem de indisponibilidade impede o registro de títulos, ainda que anteriormente prenotados, salvo exista na ordem judicial previsão em contrário".
Felizmente o provimento só entrará em vigor 30 dias após a publicação - há tempo, portanto, para corrigir a infeliz disposição.
Dentre os princípios informadores da atividade registral está o da segurança jurídica, que seria a certeza quanto ao ato e sua eficácia, promovendo a libertação dos riscos.
O princípio está estampado logo no art. 1º da lei 8.935/94. Antes mesmo da edição da lei que regulamentou o art. 236 da CF/88, o princípio já constava, também do art. 1º, da lei 6.015/73.
Segurança jurídica - os serviços registrais e notariais devem assegurá-la, sob pena de não alcançarem sua finalidade, dando margem ao surgimento de inúmeros conflitos de interesses.
Dentre os princípios fundamentais do registro imobiliário, está o princípio da prioridade.
O desrespeito a tal princípio faz cair por terra todo o sistema do registro imobiliário.
Tal princípio "determina a prioridade do título, e esta a preferência dos direitos reais, sendo eficaz o registro desde o momento em que se apresentar o título ao oficial do registro e este o prenotar no protocolo (art. 1.246 do Código Civil e art. 186 da Lei n. 6.015/73) - comporta exceções (arts. 189 e 192 da Lei n. 6.015/73). O princípio da prioridade importa em que os títulos tomarão, no Protocolo, o número de ordem que lhes competir em razão da sequência rigorosa de sua apresentação, e o número de ordem determinará a prioridade do título, e esta a preferência dos direitos reais. O desrespeito ao princípio da prioridade pode fazer ruir toda a segurança do sistema"1.
Ora, o que quer fazer o CNJ? Derrubar a prioridade prevista em lei ordinária, afastar a preferência dos direitos reais, e arruinar a segurança jurídica que o registro imobiliário proporciona. Quem comprar um imóvel com observância de todas as disposições aplicáveis, com diligência extrema, e apresentar o título de imediato ao registro, ainda assim não estará seguro - pode surgir uma ordem de indisponibilidade posterior à prenotação que, nos termos do dispositivo em comento, impedirá o registro!!!!!
O princípio da prioridade, base de todo o registro imobiliário, impõe o registro na estrita ordem de apresentação dos títulos, salvo expressa ordem judicial, específica quanto a determinado título.
Para evitar intepretações errôneas como a do CNJ, as Corregedorias Estaduais editaram normas específicas (até mesmo desnecessárias, mas com objetivo de esclarecimento).
Dispõe o Tribunal de São Paulo que "quando se tratar de ordem genérica de indisponibilidade de determinado bem imóvel, sem indicação do título que a ordem pretende atingir, não serão sustados os registros dos títulos que já estejam tramitando, porque estes devem ter assegurado o seu direito de prioridade" (Provimento nº 58/89, Cap XX, Seção IV, Subseção II, 108.3). No mesmo sentido em Minas Gerais: "Provimento Conjunto nº 93/2020, art. 850, § 2º, a ordem ou mandado de indisponibilidade genérica ou específica de determinado imóvel será prenotada e, respeitando-se a respectiva ordem de protocolo, averbada. § 3º Não serão sustados os registros dos títulos que já estejam prenotados, devendo ser assegurada a sua prioridade". O Estado do Rio de Janeiro, em recente alteração do seu Código de Normas, estabeleceu no art. 1.212: " A ordem ou mandado de indisponibilidade genérica ou específica de determinado imóvel será prenotada e, respeitando-se a respectiva ordem de protocolo, averbada. § 2º. Não serão sustados os registros dos títulos que já estejam prenotados, devendo ser assegurada a sua prioridade".
O CNJ resolveu andar na contramão.
E o faz com empenho.
Sabedor de que a indisponibilidade é a restrição ao poder de dispor da coisa, impedindo-se sua alienação ou oneração por qualquer forma, "permite" que seja lavrada a escritura2 mesmo diante de ordem de indisponibilidade, sem ponderar se seriam nulos, anuláveis, ou meramente ineficazes os atos de disposição de bens atingidos pela indisponibilidade, ignorando a origem da determinação e seus efeitos, que podem variar. À guisa de regulamentar a CNIB, o CNJ foi muito além. No entanto, permite a lavratura da escritura, mas impede o registro não só de tais escrituras, mas também daquelas lavradas e prenotadas no registro quando não havia ordem de indisponibilidade. Qual a lógica, tendo em conta o sistema de duas etapas na aquisição da propriedade? Para a primeira etapa, a indisponibilidade não é óbice, ainda que decorra da lei e o efeito seja a nulidade do ato de disposição de bens atingidos pela indisponibilidade. Quanto à segunda etapa, a indisponibilidade impede o registro, mesmo a que alcança o protocolo após o ingresso de um título totalmente hígido.
Eu, como registrador de imóveis, profissional do Direito, responsável pela segurança jurídica quanto aos atos que pratico, prefiro estar com o Raul Seixas, não quero mais andar na contramão.
Dito tudo isto, concluo que talvez não fosse preciso tanto: pode o CNJ dispor contra leis Federais, que asseguram o princípio da prioridade e a preferência dos direitos reais (art. 1.246 do CC e art. 186 da lei 6.015/73)?