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04/03/2016

Banco europeu revê modelo de negócios sob juros negativos

Imagine uma cafeteria forçada a não mais cobrar pelo café e até mesmo pagar aos clientes que venham a consumir no estabelecimento. A reação do proprietário do local será aumentar os preços por um pouco de leite, por uma colherada de açúcar e até pelo uso da xícara. Isso pode elevar o preço do chá ou de outras bebidas, na busca para obter alguma lucratividade em qualquer outro produto.

Imagine uma cafeteria forçada a não mais cobrar pelo café e até mesmo pagar aos clientes que venham a consumir no estabelecimento. A reação do proprietário do local será aumentar os preços por um pouco de leite, por uma colherada de açúcar e até pelo uso da xícara. Isso pode elevar o preço do chá ou de outras bebidas, na busca para obter alguma lucratividade em qualquer outro produto.

É com esse exemplo que o analista Geoff Dawes, do grupo francês Société Générale (SocGen), descreve o dilema que os bancos europeus vêm enfrentando, no rastro das taxas de juros negativas praticadas pelo Banco Central Europeu (BCE) e alguns BCs fora da zona do euro. "Bancos não funcionam com taxas negativas", alerta em nota a clientes do banco.

O analista prevê que a corrida dos bancos para compensar os juros negativos com tarifas de prestação de serviços vá se intensificar. Os custos de novos empréstimos tendem a subir para equilibrar o subsídio dado aos créditos antigos beneficiados com taxas baixas. E as instituições financeiras vão desencorajar cada vez mais o depósito em conta corrente, sobretudo de clientes de baixa renda e menor rentabilidade.

A Federação Europeia de Bancos (EBF, na sigla em inglês) e outras fontes da região ouvidas pelo Valor destacam o enorme desafio que o ambiente de juros extremamente baixos ou negativos trás para os bancos.

"As taxas de juros negativas estão se tornando problemáticas para os bancos europeus e o modelo tradicional de gerar receita de juros não é mais eficaz", diz o porta-voz da EBF, Raymond Frenken. "De fato, os bancos estão revendo seus modelos de negócios e considerando novas maneiras para assegurar um adequado nível de lucratividade".

Conforme Dawes, do SocGen, as tarifas representam entre 35% e 45% e os juros 60%, em média, da receita total dos bancos europeus.

No ano passado, as tarifas e comissões cresceram entre 5% e 10%, enquanto os ganhos com juros caíram 1%. A receita com tarifas cobre dois terços das despesas totais dos bancos europeus.

Mas o total das tarifas na Europa na receita global dos bancos segue abaixo daquela observada nos EUA e em outras regiões, segundo analistas. Na Suíça, as comissões representam 50% das receitas, na média, segundo analistas.

O Observatório de Finanças, ONG voltada para o setor financeiro, com sede em Genebra, constata que nos bancos de varejo na Suíça as taxas cobradas sobre depósitos vêm aumentando. Também o custo do crédito imobiliário dos bancos subiu 1 ponto percentual.

Já no caso das instituições financeiras especializadas na gestão de fortunas, a pressão vem do lado dos clientes. Num cenário de mercados em baixa, correntistas e investidores não aceitarão pagar um pedágio de 1% quando o rendimento pode ser exatamente de 1%, diz Paul Dembinski, diretor do Observatório.

Na Dinamarca, o Banco Central aplica taxa negativa para depósitos, de -0,65%. Steen Hauskou Bertelsen, diretor da Associação Dinamarquesa de Bancos, considera ser difícil quantificar o impacto total dos juros negativos na lucratividade dos bancos.

Mas ele dá um exemplo: certificados de depósitos bancários de € 42,8 bilhões emitidos há pouco mais de um ano geram um custo de aproximadamente € 6,2 bilhões no curto prazo em juros para o setor bancário, e vão se acumulando. Ele não explicitou qual a taxa cobrada nos depósitos a prazo pelas instituições para se chegar a tal simulação.

Na zona do euro, segundo o Deutsche Bank, os ativos de instituições financeiras como um todo, incluindo bancos, seguradoras, fundos de pensão e "shadow banks" (o mercado paralelo de crédito), chegou a deter ativos de € 66 trilhões no terceiro trimestre de 2015, mais do que dobrando de tamanho em 15 anos.

No entanto, seu modelo de negócios vem sendo afetado. As margens degringolaram, com as políticas de BCs de taxas de juros negativas, com novas regulamentações que aumentaram os custos e também pela concorrência mais acirrada.

A federação dos bancos europeus relata que o intervalo no retorno sobre o capital (ROE) versus o custo de capital, que se abriu após a crise financeira de 2008, está longe de ser fechado. Para a EBF, enquanto isso não ocorrer, os custos bancários serão mais altos do que o retorno sobre as atividade dos bancos. "Essa situação não é sustentável no longo prazo, particularmente na zona do euro", diz Frenken.

Medida chave da lucratividade, o ROE desmoronou após a crise, quando os bancos tiveram que digerir os créditos ruins e reestruturar suas operações. Os retornos pré-crise, que situavam-se na casa dos 14%, caíram para 8,8% no terceiro trimestre de 2015 na Europa na maioria dos bancos, um novo cenário ("new normal") que de qualquer maneira representou 1,3 ponto percentual a mais do que um ano antes, segundo Jan Schildbach, do Deustche Bank.

No ano passado, até o fim de setembro, a margem líquida de intermediação nos 20 maiores bancos europeus subiu mais de 6%, mas as tarifas aumentaram mais, acima de 8%, e o resultado das operações financeiras mais de 23%. Foi o terceiro ano seguido de crescimento das tarifas e comissões, consideradas particularmente importantes para tornar os bancos menos dependentes do crédito tradicional, com taxas de juros negativas e o ambiente de negócios especialmente volátil.

O BCE quer que os bancos voltem a emprestar mais. Mas analistas notam que o custo de um empréstimo caiu apenas 110 pontos-base no caso de uma nova operação para empresas na Holanda. por exemplo.

"Pode-se dizer que os bancos agora estão sendo punidos por guardar seu dinheiro no BCE", diz Frenken, da EBF. "Nas atuais condições de fragilidade econômica ainda há falta de demanda por empréstimos, o que significa que não vemos as taxas de juros negativas como um instrumento efetivo para estimular os financiamentos".

Se o BCE cortar mais os juros em seu encontro neste mês, existe o risco de os mercados interbancários "secarem" significativamente, "com os bancos desesperados para evitar ativos com rendimento negativo", conforme o SocGen.

Na análise do banco francês, o problema é sério para os bancos europeus de varejo. Bancos ganham seu dinheiro na margem financeira. As tarifas e comissões são uma pequena parte do modelo de negócio. Os mercados bancários com taxas variáveis se sairão pior, como na Espanha, Itália e Finlândia, onde até 90% dos ativos de base têm o potencial de ser atingidos por rendimento zero se o BCE continuar cortando as taxas de depósito.

De outro lado, bancos estão isolados dos juros negativos pela taxas prefixadas no financiamento imobiliário, empréstimos denominados em outras moedas como dólar, e por operações fora desse universo de juros abaixo de zero, acrescenta o SocGen.

Para Dembinski, do Observatório de Finanças, o aumento das tarifas e comissões é insuficiente para compensar as perdas com juros extremamente baixos. "Está havendo redução de pessoal e parece inevitável mais concentração bancária", diz.

A experiência dos bancos japoneses vem sendo estudada. Desde os fins dos anos 1990, o ambiente de taxas de juros e inflação extremamente baixas tornou-se quase permanente no país. O spread entre captação e crédito foi comprimido. Com a queda nos ganhos com juros, que representavam 60% da receita total, os bancos japoneses reduziram substancialmente seus custos e buscaram novas fontes de rendimento em vez de apenas empréstimos domésticos. Expandiram as compras de títulos públicos do Japão, diminuindo seus riscos, e aumentaram créditos para o exterior, por exemplo.

A Federação dos Bancos Europeus vai divulgar em abril relatório sobre o impacto dos juros negativos sobre os bancos do velho continente. Por sua vez, o BCE vai revisar e analisar este ano o modelo de negócios do setor.

 

FONTE: VALOR ONLINE