Cinco meses depois, a Câmara Municipal de São Paulo votará novamente mudanças nas principais leis urbanísticas da cidade, como o Plano Diretor e a Lei de Zoneamento. A justificativa é de que seriam questões pontuais, mas emendas e alterações adicionais têm sido discutidas e apresentadas internamente pelos vereadores, como uma nova prorrogação da “anistia” a imóveis irregulares, dentre outras.
A maratona de votações está prevista para esta ou a próxima semana, às vésperas do recesso parlamentar. A expectativa é de que a discussão sobre as demais mudanças nos projetos sejam tratadas especialmente nos próximos dias. Em ocasiões recentes, contudo, alterações significativas foram feitas a dias ou horas da deliberação pelos vereadores.
Parte dessas mudanças será feita em projetos enviados pela gestão Ricardo Nunes (MDB). Outra parte será incorporada em antigos projetos de lei de vereadores colocados em pauta, alguns de seis anos atrás.
O principal exemplo é uma proposta de 2018 resgatada no mês passado, que originalmente propõe uma mudança no zoneamento de um trecho do Pacaembu. Oficialmente, está sendo divulgada como “correção”, mas o enquadramento proposto já está em vigor há quase um ano.
Ou seja, o texto no formato atual não faz qualquer mudança na legislação. Mesmo assim, foi aprovado em primeira votação e tende a trazer outras alterações no zoneamento por meio de um texto substitutivo ou emendas. Por enquanto, o Estadão apurou apenas uma proposta de nova classificação de zona, mas a expectativa é que essas demandas de vereadores sejam mais discutidas ao longo dessa semana.
Nos últimos anos, mudanças no zoneamento e no Plano Diretor e a cessão de terrenos municipais têm sido aglutinadas em projetos únicos. Isto é, tudo que altera uma lei entra em um mesmo projeto, mesmo que seja apresentado inicialmente como algo muito específico.
Essa medida ocorreu, por exemplo, na “Lei das Dark Kitchens”, que alterava o zoneamento e recebeu, na Câmara, o trecho que liberava mais barulho no entorno de estádios e zonas especiais, em 2022.
Esse tipo de medida é criticada por especialistas, tanto pelas sucessivas alterações na legislação urbanística e quanto pela apresentação do texto final e das emendas a dias ou no dia da votação, o que dificultaria o acompanhamento pela sociedade civil. Além disso, outro ponto questionado é a aglutinação de várias mudanças em projetos inicialmente apresentados como pontuais, o que deu margem para judicializações recentes, com o entendimento de que seriam “jabutis”.
Já a Câmara tem destacado que mudanças no texto e emendas são prerrogativas dos vereadores. Também tem salientado que seriam pontuais, não novas “revisões”, e que grande parte dos projetos são de autoria do poder Executivo.
A reta final das votações, ainda, será a despedida de Milton Leite (União Brasil). O presidente da Câmara tem conseguido conciliar a aprovação de diversos projetos do Executivo nos últimos anos, até mesmo com votos de uma parte da oposição. Por enquanto, é incerto o nome de quem o substituirá.
A maratona terá cerca de oito projetos urbanísticos e de temas afins, a maioria de pouca repercussão até então, com audiências públicas esvaziadas — algumas de poucos minutos, sem nenhuma manifestação contrária ou favorável. A maior exceção é o projeto que altera o Plano Diretor, cuja última audiência ficou lotada e precisou trocar de lugar diante da mobilização de uma parte da população contra a expansão da Central de Tratamento Leste e a criação do Ecoparque Leste, em São Mateus, na zona leste.
Esse projeto tem duas alterações (via emenda ou texto substitutivo) confirmadas, por sugestão do líder do governo, Fabio Riva (MDB). Uma delas é a prorrogação da “anistia” para a regularização de imóveis (a ser estendida até o fim de 2025), enquanto a outra dá mais um ano para o envio à Câmara de dois grandes planos de transformação urbana para as zonas norte e leste (os chamados PIUs Arco Tietê e Leste).
Pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Bianca Tavolari avalia que tantas alterações sucessivas na legislação urbanística dificultam um controle social. Um exemplo é o que chama de “PLs ônibus”, em que “pegam carona” outras pautas com alterações na mesma lei, mesmo que de temas distintos.
A pesquisadora analisa que a Câmara está mais “empoderada” nos últimos anos, com ampla maioria de votos, e podendo fazer “microalterações a qualquer momento”. “E em fim de mandato, quando ninguém está prestando atenção”, completa.
Para ela, mudanças frequentes na lei a pedido da Prefeitura também indicam que não há um planejamento insuficiente nas esferas públicas. As revisões recentes geraram, por exemplo, uma série de novos projetos de lei, decretos e afins para corrigir problemas e esclarecer dúvidas de licenciamento, por exemplo.
“Se deveria ter um diagnóstico do porquê não ter sido feito antes, e a gente ainda nem sabe direito o que vai acontecer com as emendas”, salienta. “Um processo atropelado gera problemas que vão sendo descobertos ao longo do tempo,”, completa.
Consultor e ex-diretor do Departamento de Uso do Solo da Prefeitura, o urbanista Daniel Todtmann Montandon aponta uma “grande fragmentação” em sucessivos projetos de lei urbanísticos, especialmente nos últimos cerca de quatro anos. Dessa forma, mesmo alterações pequenas solicitadas pelo Executivo podem dar origem a mudanças maiores, até “desconfigurações” pela Câmara.
Nesse cenário, também destaca que parte dos projetos não tem passado com tempo suficiente ou são sequer apresentados nos órgãos colegiados (conselhos, comissões etc), voltados a discutir esses temas. “O açodamento prejudica um bom processo de planejamento, com estudo cuidadoso, mais debate e audiência”, argumenta.
O que dizem os vereadores?
Os projetos da maratona de votações foram aprovados em primeira votação, majoritariamente em novembro e com ampla maioria de votos. Relator das revisões do Plano Diretor e da Lei de Zoneamento, Rodrigo Goulart (PSD) destaca benefícios de algumas das alterações e defende que parte delas não poderia ser feita antes porque são demandas novas, como a ampliação do aterro (que é derivada da renovação do contrato de concessão do lixo), por exemplo. “A gente não tem compromisso com e erro e, se faltou alguma coisa (nas revisões), tem que fazer (a alteração)”, completou.
Já o vereador eleito e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Nabil Bonduki (PT) defende que “não se pode pensar a cidade por pedacinhos”. “É uma prática nociva: vai se votando cada projeto individualmente ao sabor de interesses específicos”, completa. “Antes, as mudanças eram articuladas e pensadas em conjunto. Não estou falando em ficar com o zoneamento congelado por 30 anos, mas com alterações periódicas articuladas e em conjunto”, acrescentou.
O que diz o projeto do Plano Diretor?
O projeto é de autoria da gestão Nunes, originalmente voltado a viabilizar o processo de ampliação de um aterro e a implantação de um chamado ecoparque em São Mateus. Não se trata de como será a obra em si, mas exclusivamente de uma nova classificação do Plano Diretor para o endereço, pois a atual não permite esse tipo de atividade.
Na justificativa, a Prefeitura argumenta que a área seria “particularmente vocacionada para a gestão de resíduos sólidos”, pois “seria possível reaproveitar a estrutura existente – e cuja área, não por acaso, já estaria historicamente afetada para tanto – assim como também assegurar a proteção da Macroárea de Preservação de Ecossistemas Naturais adjacente”. Também diz que a manutenção e ampliação são “cruciais para evitar problemas como a superlotação de aterros existentes”.
A proposta tem sido muito criticada por movimentos sociais e uma parte dos especialistas. Dentre os pontos principais, estão que a expansão permitirá a remoção de cerca de 10 mil árvores. O governo tem respondido que fará a compensação ambiental e que a maioria é de espécies exóticas. A votação do projeto deve ser mantida mesmo após uma decisão judicial liminar dificultar a ampliação do aterro.
Entre as emendas previstas, estão duas apresentadas pela liderança de governo. No caso da “anistia”, a justificativa é que não seria possível concluir todos os pedidos de regularização até o fim deste ano, de modo a ser necessária a prorrogação.
Segundo a Prefeitura, dos 72 mil pedidos abertos desde 2019, 30 mil ainda estão em tramitação. “A previsão é que todos os processos de anistia sejam finalizados até julho de 2025″, disse em nota.
A outra alteração é a prorrogação em um ano do prazo de envio dos PIUs Arco Tietê e Arco Leste, voltados a promover grandes transformações em diversos bairros da zona norte e leste, com incentivos construtivos e intervenções urbanísticas. De acordo com a Prefeitura, “estão em processo de elaboração e a prorrogação de prazo se dá em razão da necessidade de estudos complementares para adaptação às recentes alterações normativas (Plano Diretor e Lei de Zoneamento)”.
O que diz o projeto que muda a Lei de Zoneamento?
O projeto que altera a Lei de Zoneamento não é novo, tampouco de autoria da gestão municipal. A Câmara decidiu resgatar um PL de 2018, de autoria de Rodrigo Goulart, relator das recentes revisões e “revisões das revisões” das leis urbanísticas paulistanas. A colocação em pauta não teria sido a pedido do autor do projeto.
Nesse caso, a proposta é de alteração no zoneamento de um único imóvel, que era marcado como Zona Exclusivamente Residencial (ZER) no Pacaembu, no centro expandido. Com o projeto, passaria a ser uma Zona Corredor (ZCOR), de modo a permitir o uso por comércios e serviços.
Essa mudança está, contudo, em vigor há quase um ano. Isto é, por enquanto, a proposta não faz qualquer alteração de fato na lei. A expectativa é, contudo, que o texto seja modificado para incorporar outras mudanças no zoneamento. Já há emenda protocolada.
O que diz o projeto que prorroga incentivos a carros elétricos?
A proposta amplia incentivos para carros elétricos e a hidrogênio até 2030, como o reembolso de uma parte do IPVA por cinco anos e a isenção de restrição no rodízio. No ano passado, 935 automóveis tiveram acesso ao benefício. O projeto atual é dos vereadores Rodrigo Goulart e Luna Zarattini (PT).
Em audiência pública, representantes da Prefeitura tiveram posições opostas sobre o projeto. A Secretaria Executiva de Mudanças Climáticas apoia a prorrogação, tendo salientado os impactos dos combustíveis fósseis. Já a Secretaria da Fazenda argumentou que o projeto poderia ter “grande impacto fiscal”, com uma renúncia fiscal estimada de R$ 3,2 bilhões até 2030, e que não há comprovação de que o benefício estimule uma transição da frota.
O que é o PIU Arco Pinheiros?
É um grande plano urbanístico, com regras e incentivos específicos para uma área de cerca de 1,5 hectare, que abrange trechos do Jaguaré, da Vila Leopoldina e do Butantã, na zona oeste, incluindo o entorno da Cidade Universitária da USP. A proposta foi aprovada em primeira votação, em 2022, mas foi originalmente enviada à Câmara em 2019, na gestão Bruno Covas (PSDB).
À época, falava-se na expectativa de aumentar o adensamento da região, com ao menos mais 70 mil moradores. O projeto a ser apreciado na votação definitiva deve ser um texto substitutivo, com alterações no original. Dentre elas, estão incentivos para uma transformação ainda maior no entorno da Avenida Escola Politécnica, além de adaptações para as obras da Nova Raposo.