A cartilha das finanças pessoais é clara ao dizer que pagar à vista é sempre melhor que comprar a prazo. Entretanto, com o atual cenário de taxa básica de juros (Selic) nas alturas, existe uma janela para agir diferente.
Clientes de alta renda estão recorrendo ao financiamento imobiliário como estratégia de investimento. Em vez de comprar imóveis à vista, eles deixam o dinheiro em aplicações e utilizam os juros baixos do crédito imobiliário para adquirir os bens a prazo.
Se por um lado a Selic subiu de 2% para os atuais 13,75% ao ano nos 16 últimos meses - alta de 600% - por outro, as taxas do crédito imobiliário tiveram um reajuste muito mais modesto no mesmo período.
Elas saltaram de uma média de 7% para 9,5% ao ano, considerando os juros praticados pelos cinco maiores bancos: Caixa, Bradesco, Itaú, Banco do Brasil e Santander. É este conjunto de fatores – juros do financiamento imobiliário subindo muito menos que os juros da Selic - que permite uma estratégia de investimento que inclui a contratação de uma dívida.
Em outras palavras, o cliente que tem dinheiro para comprar o imóvel à vista, paga a entrada com um pedacinho dessa grana e o restante aplica ganhando 13,75% ao ano. Já o restante do valor do imóvel, ele pega um financiamento imobiliário, pagando juros entre 7% e 9,5% ao ano.
Tá, e qual vantagem Maria leva nisso? Simples: a diferença entre pagar juros de menos de 10% e receber juros de quase 14%. Essa diferença tão grande entre as taxas (neste caso, a Selic e o financiamento imobiliário) é algo incomum de acontecer. Mas enquanto existir, é um bom negócio, não!
“A gente vive hoje num cenário em que existe a possibilidade de o cliente tomar crédito imobiliário numa taxa prefixada de 11,52%, por exemplo, em 120 meses. Ao mesmo tempo, ele realiza uma operação de renda fixa de 13%, até 14% ao ano, dependendo do prazo”, afirma o Guto Miranda, Diretor Global do Bradesco Private Bank.
Por isso, acaba valendo mais a pena investir o dinheiro que você usaria para comprar o imóvel em aplicações que rendam mais que o Custo Efetivo Total (CET) da operação de crédito, que fica em torno de 11,5% ao ano, a depender do banco e perfil de risco do cliente. Na conta do custo total entram gastos com os seguros obrigatórios e tarifas bancárias.
O negócio é bom para os clientes que conseguem investir nos mercados financeiro e imobiliário (comprando o imóvel) ao mesmo tempo. Mas também é interessante para os bancos que ganham nas duas pontas - no crédito e no investimento.
Uma questão de liquidez
Não se trata apenas da rentabilidade. A manobra também serve àqueles que vêem uma oportunidade no mercado imobiliário, mas não querem sair de imediato de suas alocações no mercado financeiro.
“Com o crédito imobiliário, que é de longuíssimo prazo, o cliente não tem pressão de liquidez, não precisa mexer nas suas aplicações que podem render acima do custo do crédito imobiliário, como ocorre agora”, afirma Leonardo Kitaguchi, superintendente de estruturação, produtos e crédito do Itaú Private.
Sair de uma aplicação antes do prazo planejado, de uma hora para outra, pode causar sérios prejuízos. Perde-se na renda fixa, se a marcação a mercado estiver desfavorável. Ou seja, quando o título se desvaloriza diante da curva de juros e o preço fica abaixo do valor investido. E perde-se na renda variável: determinadas ações podem estar em um momento de baixa e o cliente fica no prejuízo se as vende inoportunamente.
De acordo com Sérgio Granado, superintendente de produtos do Santander Private Banking, hoje o crédito imobiliário é aprovado com muita agilidade, principalmente para clientes de alta renda. Logo, permite a compra do imóvel com rapidez, sem ter de se desfazer de posições estratégicas.
“Com até 35 anos de prazo, o cliente não precisa dispor mensalmente de uma parcela muito alta. Apesar disso, nesse segmento [do cliente que aplica o dinheiro que tem e pega um financiamento imobiliário], o prazo para quitar a dívida é em média de 5 anos. Porque ao longo do tempo, o cliente vai recebendo liquidez de outros investimentos que vão vencendo ou da venda de participação de alguma empresa. E quando ele gera fluxo de caixa, amortiza a dívida rapidamente”, explica o executivo do Santander.
Entre as vantagens de tomar o crédito imobiliário em vez de pagar à vista, os executivos destacam ainda a questão da diligência, que é o conjunto de cuidados que os bancos tomam antes de aprovar o empréstimo. Eles fazem a inspeção da propriedade, avaliam e verificam se há pendências no histórico e Justiça. É barba, cabelo e bigode. Tudo isso para se proteger, já que o bem será a garantia em caso de calote. Ou seja, o banco já faz o serviço de ver se está tudo certo para a compra daquele imóvel.
Pandemia
Antes mesmo da reviravolta no ciclo de juros no Brasil, há mais de um ano, o crédito imobiliário já vinha sendo usado como recurso, porque naquele momento estava com os juros em menor nível histórico. Segundo Granado, até quando a Selic estava mais baixa que as taxas dos bancos, os clientes viam oportunidade na operação.
“Há outros conceitos que interferem na decisão, não somente as taxas de juros. Na época, fizemos várias operações [de financiamento imobiliário] com juros a 6,99% ao ano e agora o cliente está satisfeito porque está ganhando [já que o financiamento subiu e ele conseguiu taxas melhores]”, aponta.
De fato, os ganhos são ainda maiores para os investidores que tomaram o crédito no ano passado e conseguiram travar os juros baixos por um longo prazo e agora se aproveitam da onda de juros altos na ponta dos seus investimentos.
Somado à queda das taxas do financiamento de imóveis, a pandemia também veio para aquecer o mercado imobiliário, que vinha morno desde 2017. Os executivos afirmam que a procura pelo crédito cresceu na crise, acompanhada da mudança de comportamento que fazia o brasileiro repensar a moradia.
“Vivemos nessa dinâmica híbrida. Percebemos isso pela aceleração dos investimentos na renda fixa, mas houve também aceleração na aquisição de residências. Entramos em um momento em que os imóveis estão sendo vistos como alternativa de investimento para as famílias, como uma forma de proteção do patrimônio. Então, os clientes têm aproveitado o momento para comprar a segunda e terceira residência no crédito imobiliário”, afirma Guto Miranda, do Bradesco.
Quais os riscos?
A ideia faz sentido. Mas não pode ser aplicada a todos os investidores. “Nós avaliamos exatamente a necessidade dos clientes de alta renda para saber se realmente é um bom negócio para eles. Não é só o cenário propício para essa manobra [entre o financiamento do imóvel X o investimento do dinheiro], tudo depende também dos objetivos de cada um”, afirma Cristina Katz, superintendente do Inter Wealth Management.
Para Leonardo Kitaguchi, do Itaú, é preciso ter certeza de que a compra faz sentido no portfólio do investidor, que deve considerar também custos adicionais envolvidos na operação, como taxa de corretagem numa eventual venda, seguros, impostos, cartório, despesas com condomínio e vacância.
“Se trata de uma oportunidade, mas o cliente que for adquirir o imóvel para investimentos e não moradia tem de ficar atento a alguns riscos, como a possibilidade de desvalorização do imóvel, o descasamento de prazo entre o financiamento e as aplicações financeiras, a queda do rendimento dessas aplicações, risco de crédito de certos investimentos”, pontua. Tem muita coisa envolvida.
No caso de outra mudança brusca na curva de juros, que torne o financiamento desvantajoso, o investidor sempre pode antecipar o pagamento do saldo devedor e finalizar a operação, sem penalidades.
“Se a aplicação onde o cliente investiu não estiver rendendo acima do custo do financiamento, é possível pré-pagar a dívida imobiliária sem custo adicional”, completa Kitaguchi.
Matéria publicada em 05/09/2022