Quando a rua Augusta começou a se verticalizar, foi um susto. Os frequentadores e os moradores da região passaram a notar uma descaracterização naquela via que liga o Jardim Europa ao centro da capital paulista. Pequenas lojas, bares, teatros, galerias e outros tipos de estabelecimentos foram sendo engolidos pelo avanço de grandes condomínios, que davam as costas à rua, com muralhas.
Não fosse por um dispositivo legal, teria a rua Augusta virado um deserto de almas? O Plano Diretor de 2014, cuja revisão foi suspensa em caráter liminar pela Justiça, propôs um incentivo para reverter um fenômeno que atingia não só aquela rua, mas a cidade toda.
A ideia era fazer uma interferência para que a malha da cidade não ficasse cercada por paredes cegas que proveriam segurança e privacidade para uma elite econômica.
Ficou estabelecido que cada empreendimento poderia construir 50% a mais nos térreos em relação ao limite permitido pela lei de zoneamento. Esse benefício poderia ser aplicado caso a extensão fosse destinada ao comércio, com a entrada posicionada de frente para a rua.
Faltam dados oficiais consolidados sobre o tema. A gestão municipal diz não ter as informações sobre o que foi realizado pelo setor imobiliário em relação a esse estímulo. Mas a mudança está em curso e se fez notar especialmente neste ano, com o relaxamento das regras de isolamento social.
O Secovi, entidade representativa do setor imobiliário, diz que no ano passado, de 931 lançamentos imobiliários residenciais na capital, 137 fazem uso da fachada ativa, ou 15% do total.
As fachadas ativas começaram a aparecer em maior número e em diversos bairros entre 2018 e 2019, cerca de quatro anos após a publicação do Plano Diretor, mas é agora que estão ganhando força.
No intervalo imposto pelos períodos de isolamento social, o que se via eram lojas novinhas, porém com placas de vende-se ou aluga-se na porta. Somente do fim do ano passado para cá, com o relaxamento das medidas de prevenção contra a covid-19, a ideia ganhou fôlego, tornando alguns pontos da cidade mais abertos à convivência entre residências e comércio.
Questionada sobre a adesão do mercado ao modelo, a prefeitura respondeu apenas que "caso seja constatado o desvirtuamento do alvará de execução de edificação nova expedido pela municipalidade, a subprefeitura local executa a autuação com multa, além de aplicar o auto de embargo da obra".
O valor da multa no embargo por desvirtuamento do alvará de execução de edificação nova é de R$ 164,27 por metro quadrado de área irregular, diz a administração municipal.
Um texto no site da prefeitura explica o incentivo ao uso de fachada ativa. Segundo ele, esse modelo "promove a dinamização dos passeios públicos em relação ao térreo das edificações".
Quem anda pela Vila Madalena, na zona oeste, pela Vila Mariana, na sul, e pela Consolação, na região central, não vai ter dúvidas da transformação. Reproduziu-se em diversas regiões a tipologia de lojas que têm como vizinha uma portaria de acesso para apartamentos.
"Por muito tempo, a elite foi se confinando, considerava que comércio na fachada era algo que depreciava o imóvel; ao mesmo tempo, esse cliente achava isso muito bonito quando era em um prédio em Barcelona", diz Fernando Moliterno, diretor de incorporação da Idea!Zarvos, que, mesmo antes do Plano Diretor de 2014, começou a dar atenção para essa mesma tipologia arquitetônica.
Para Moliterno, com o passar dos anos e com o estímulo do Plano Diretor de 2014, "as pessoas começaram a ver isso com mais naturalidade, deixaram de ser reticentes quando analisam um imóvel que tem fachada ativa".
Ele, porém, sugere uma mudança no Plano Diretor. Moliterno diz que o objetivo de estimular a circulação e dar mais segurança às ruas seria bem atendido se uma ou duas frentes de um empreendimento apresentasse o conceito de fachada ativa. "Hoje, para ter o estímulo, ele precisa apresentar comércio em todas as suas frentes", diz.
A Metro Arquitetos Associados está propondo para a região central, onde há um movimento para atrair moradores, um projeto que potencializa essas características e, principalmente, o uso misto das edificações.
O arquiteto e urbanista Gustavo Cedroni, sócio-diretor do escritório, diz que em breve será lançado um empreendimento com três blocos. Dois deles já existem e um terceiro vai ser construído, somando-se um total de 35 mil metros quadrados para uso residencial. Exceto no térreo.
Segundo Cedroni, "o projeto vai dar continuidade a um eixo de calçadões que vêm desde o largo do Paissandu", incluindo passagens internas pelo térreo dos edifícios, que serão destinadas ao comércio.
"A ideia é fazer uma passagem que conecte a rua 7 de abril à rua Basílio da Gama. É a reprodução de uma modelo muito bom, que são essas galerias que fazem um viário de pedestres conectando duas ruas. Vai ter impacto em uma região que não está tão qualificada, falta mais vida à noite, mais gente morando.
O personal trainer Fábio Jones Paula Miranda resolveu apostar em uma academia que fica no térreo de um empreendimento ao lado do metrô Vila Madalena. Ele inaugurou a Jone Sport em setembro de 2019 e logo vieram as medidas de isolamento social por causa da pandemia. Miranda conseguiu renegociar isenções sobre o valor do imóvel e esperou.
Em 2021, o negócio começou a engatar, e hoje ele tem uma cartela de 80 clientes, sendo que, para sua surpresa, poucos deles moram no edifício em que a academia está localizada. "Quando escolhemos o lugar, a gente achou que ia ter uma clientela específica no prédio, mas isso não aconteceu. Muitos dos nossos clientes moram na vizinhança."
Para ele, a vantagem principal de ter um empreendimento neste modelo é a segurança fornecida pela circulação de pedestres, pela presença de outros estabelecimentos ao lado, pela portaria do edifício e por um sistema de vigilância com câmeras que acaba tendo uso coletivo.
Em rondas por diferentes bairros de diferentes regiões da cidade, a Folha identificou que o modelo pegou em bairros como Tatuapé, Perdizes, Pinheiros, Cerqueira César e na região central. Mas ainda aparece com timidez na zona norte, em bairros como Santana e Vila Maria.
O arquiteto e urbanista Fernando Ferreira Lima Matines, consultor de legislação urbana aplicada, exemplifica como as fachadas ativas podem prover a população com mais um instrumento de segurança, e ele chama a atenção para a vulnerabilidade das mulheres. "É diferente para uma mulher andar três quarteirões que são margeados por muros altos, à noite, do que para um homem" diz.
Para ele, contudo, empreendimentos de altíssimo padrão, especialmente os prédios com unidades com área superior a 150 metros quadrados, ainda não demonstraram adesão significativa a esse novo padrão
Matéria publicada em 24/05/2022