Por Priscila Mengue
Alvo de investigação de dois anos do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), a destinação de apartamentos com incentivos municipais para a baixa renda será apurada por uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara Municipal de São Paulo. A definição foi anunciada pelo presidente do Legislativo, Ricardo Teixeira (União Brasil), na reunião semanal das lideranças dos partidos, o Colégio de Líderes, nesta terça-feira, 1º.
As principais associações do setor afirmam que houve apenas poucos casos de “desvirtuamento” de moradia popular. A gestão Ricardo Nunes (MDB) tem argumentado que as irregularidades são “pontuais” e diz que está apurando as denúncias recebidas - já houve multas aplicadas em casos de irregularidades identificadas pelo Município.
A comissão sobre Habitação de Interesse Social (HIS) foi proposta pelo vereador Rubinho Nunes (União Brasil), presidente da Comissão de Política Urbana, Metropolitana e Meio Ambiente da Câmara. Proposta semelhante havia sido apresentada pelo vereador Nabil Bonduki (PT) - que envolveria também prédios irregulares em geral -, mas a oposição foi atendida com outra CPI.
Os parlamentares da oposição conseguiram emplacar a abertura de uma comissão sobre enchentes, proposta por Alessandro Guedes (PT). Estará focada especialmente no histórico de inundações do Jardim Pantanal, na zona leste.
Por que a habitação para baixa renda é investigada em São Paulo?
O MP-SP apura indícios de destinação desses imóveis para público fora da faixa de renda prevista desde 2022. Por lei, esses apartamentos somente podem ser moradia para pessoas com renda mensal de até três salários mínimos (HIS-1) e de três a seis salários (HIS-2), porém foram identificados casos de unidades compradas ou alugadas para público distinto.
Grande parte dos endereços identificados envolve bairros de classe média e nobres, como Vila Olímpia, Pinheiros e Itaim-Bibi. Além disso, os condomínios são majoritariamente de microapartamentos e pequenas unidades.
A partir das denúncias do MP e de um convênio com cartórios, a gestão Nunes recentemente começou a emitir as primeiras multas e avisos de sanção a pelo menos 11 empreendimentos que não comprovaram a destinação adequada. O número de notificações é de cerca de 200, com apuração ainda parcial, segundo a Prefeitura.
A partir do Plano Diretor de 2014, a criação de HIS pela iniciativa privada ganhou diversos incentivos construtivos, tributários e fiscais em São Paulo. Os benefícios são destinados às empresas, que são responsáveis por todas as fases de desenvolvimento, desde o projeto até a venda, como qualquer outro empreendimento.
Nesse caso, o único compromisso é de que as unidades sejam destinadas às faixas de renda previstas em lei. Além disso, desde 2018, não é necessário atender preferencialmente a público cadastrado na Cohab ou em qualquer outra lista preferencial.
Esse tipo de empreendimento teve um “boom” nos últimos anos. Desde 2016, com a Lei de Zoneamento, o número de empreendimentos licenciados com esse perfil passou de 77 para 636, em 2020. Em total de apartamentos, esse crescimento foi de 242%, de 14.488 para 49.589, no mesmo período. O balanço parcial é da plataforma de monitoramento da Prefeitura, atualizado apenas até meados de 2021.
Dados compilados pelo Secovi-SP e pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) apontam que esse segmento se tornou predominante na cidade, chegando a 75,1% das moradias com alvará expedido entre janeiro de 2019 e setembro de 2024. Ao todo, são 248.498 HIS e Habitação de Mercado Popular (HMP), que também recebe benefícios, mas é uma minoria em relação à de Interesse Social.
Como o Estadão mostrou, ao menos 11 empreendimentos na cidade receberam multas e aviso de sanção desde o fim de janeiro, somando cerca de 2 mil unidades, a maioria microapartamentos em bairros de classe média, como Pinheiros, Lapa, Vila Romana e Alto do Ipiranga. Por enquanto, dois tiveram a penalidade inicial publicada, de R$ 31 milhões ao todo.
Essas penalidades envolvem empreendimentos ligados a diferentes incorporadoras, construtoras e grupos do mercado imobiliário, como Benx, Cyrela, Canopus, MF7, You,Inc, Tecnisa, Metrocasa, Presence Empreendimentos, Rev³ Incorporadora, Floor e Consthruir. A maioria das empresas afirmou ter seguido a legislação vigente à época do licenciamento dos edifícios.
Os casos envolvem basicamente microapartamentos e pequenas unidades classificadas como HIS-2, categoria voltada a famílias com renda de três a seis salários mínimos.
Hoje, não há, contudo, um sistema geral de verificação e controle da destinação dessas unidades na cidade, a fim de avaliar se viraram moradia para o público de menor renda. A Prefeitura está em processo de contratação de uma empresa para o desenvolvimento de um sistema de monitoramento, por cinco anos, no valor de R$ 43,7 milhões.
O Município obteve recente vitória na Justiça para manter a política de incentivos, enquanto a Promotoria defendia a suspensão temporária até se intensificar a fiscalização. A gestão Nunes disse que os casos seriam “pontuais”, mas, quando anunciou as primeiras multas, afirmou que as empresas “se beneficiaram de isenção de impostos para construir unidades habitacionais à população de baixa renda, mas desvirtuaram o processo comercializando moradias a pessoas que não se encaixavam na modelagem”.
A ação do MP-SP também era vista com preocupação pelo mercado imobiliário. Na decisão, a Justiça reconheceu a obrigação da Prefeitura em fiscalizar e dar transparência para a aplicação da política de incentivo. “A necessidade de se criarem instrumentos de controle é incontroversa nos autos e restou devidamente reconhecida já nas informações prestadas”, pontuou o juiz Renato Augusto Pereira Maia, da 11ª Vara da Fazenda Pública.
Quais são os benefícios?
A política municipal de incentivo foi criada a partir do Plano Diretor de 2014 e da Lei de Zoneamento de 2016, na gestão Fernando Haddad (PT), com regulamentações e alterações nos anos posteriores. Hoje, reúne uma série de benefícios fiscais, tributários, urbanísticos e construtivos muito atraentes para o mercado imobiliário, reduzindo custos em milhões, como a isenção de outorga onerosa, principal taxa cobrada para prédios verticais na cidade.
A produção de HIS é incentivada especialmente para os chamados Empreendimentos de Habitação de Interesse Social (EHIS), onde essas unidades são ao menos 80% da área construída. Esses imóveis têm maior volume construtivo permitido (calculado em relação ao tamanho do terreno) e, em diversos tipos de zoneamento, não têm limite de altura. Como exemplo, em Zona Mista (”miolos de bairro”), o máximo é 28 metros para construções sem esse perfil.
À Promotoria, alguns compradores relataram que não foram informados de que tinham adquirido uma habitação de baixa renda. Além disso, há indícios de que pessoas físicas e jurídicas adquiriram os imóveis cientes de ser uma habitação de interesse social e, mesmo assim, anunciaram a revenda ou aluguel (comum e via plataformas de hospedagem) por valores considerados incompatíveis para essa faixa.
O que o MP critica?
“Essa privatização dos lucros e socialização dos prejuízos é resultado de uma política pública mal formulada e que pode estar gerando vultosos prejuízos ao erário, sendo também fruto, inexoravelmente, da falta de avaliação técnico financeira. Nesse contexto, questões como eficácia, economicidade e eficiência jamais foram verificadas pelo requerido”, diz o MP. “É certo que vem ocorrendo em larga medida”, também assinalou.
Na ação judicial, é mencionada expressão do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (Labcidade) da USP: “fake HIS”. Os pesquisadores da Faculdade de Arquitetura de Urbanismo têm falado em “social housing washing”, com possível maquiagem que daria indevida aparência de produção de moradia popular a uma política que incentivou imóveis utilizados por outra parcela da população.
No ano passado, após solicitar notificação dos cartórios, a Promotoria recebeu, em menos de dois meses, mais de 560 casos de imóveis e empreendimentos suspeitos. “Unidades colocadas à venda pelo mercado imobiliário como HIS e HMP têm metragem (em geral) entre 24 e 30 m², não raras vezes por valor que ultrapassa R$ 20 mil por metro quadrado. Essa tipologia e preço evidenciam-se claramente, em princípio, como sendo incompatíveis com famílias que recebem de três a seis salários mínimos”, aponta o MP na ação.