Os bancos públicos voltaram a crescer em ritmo mais forte que o resto do mercado e superaram os concorrentes privados nacionais pela primeira vez em sete anos.
A ultrapassagem se deu em fevereiro, quando as instituições financeiras estatais passaram a deter 42,95% do estoque de empréstimos e financiamentos do país, enquanto os concorrentes brasileiros de capital privado ficaram com 42,27%. Há ainda uma fatia de 14,71% nas mãos de bancos estrangeiros, como o Santander.
Portanto, no cômputo geral, os privados continuam majoritários em participação de mercado, mas a velocidade de crescimento dos públicos - que começou a aumentar em abril do ano passado - acende uma luz amarela entre analistas. Com reiteradas declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no sentido de que as instituições financeiras estatais podem ajudar a estimular a economia, a expectativa é que a participação desses bancos continue em alta. O receio de economistas é que tal movimento dificulte o trabalho da política monetária de levar a inflação à meta.
Os dados sobre o crédito, do Banco Central (BC), vão até março e é muito cedo para dizer que a expansão dos bancos públicos reflete uma diretriz do novo governo. Por enquanto, ela se dá principalmente porque os estatais concentram a maior parte do crédito com recursos direcionados, que é mais resiliente e menos suscetível aos efeitos da alta da Selic que as operações com recursos livres.
A fatia do crédito direcionado no bolo total vem crescendo desde meados de 2022, como mostrou o Valor no mês passado. A Caixa, com o financiamento habitacional, o Banco do Brasil (BB), com as linhas agrícolas, e o BNDES, com programas para empresas, são os maiores nas operações com esse tipo de recursos.
Esse movimento tem gerado o receio de que o governo possa estar ensaiando um uso dos bancos públicos para estimular a economia, como fez na administração Dilma Rousseff (PT). Para especialistas, esse risco é concreto e até mesmo provável, restando saber a magnitude com que isso será feito.
Nos três primeiros meses de 2023, o saldo de crédito dos bancos privados recuou 1%, enquanto o dos públicos subiu 1,7% em relação ao mesmo período do ano passado. Ou seja, se não fossem as instituições estatais, o saldo teria encolhido. De forma semelhante, o crédito direcionado cresceu 1,9%, enquanto o livre encolheu 0,5%. Um dos destaques foi o crédito o rural, com expansão de 4,7% nas linhas de pessoa física, enquanto o imobiliário avançou 2,4%. Procurados, Caixa e Banco do Brasil não quiseram se manifestar por estarem em período de silêncio antes da divulgação dos seus balanços.
Em recente entrevista ao Valor, a presidente do BB, Tarciana Medeiros, afirmou que o banco não vai pisar no freio na concessão de crédito. Ela exaltou o aumento na concessão para micro, pequenas e médias empresas e na agricultura familiar. “Nos primeiros cem dias [de gestão], tivemos crescimento de 36% em relação a 2022, com R$ 4,4 bilhões liberados”, disse.
Governo crê que as instituições têm papel importante para crescimento”
— Tony Volpon
Na semana passada, a Câmara dos Deputados aprovou uma proposta que altera a taxa de remuneração dos recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) repassados ao BNDES para financiamento à inovação e digitalização. O indexador passou da Taxa de Longo Prazo (TLP) para a TR, barateando o funding e abrindo caminho para uma redução dos juros cobrados pelo banco. A mudança foi um “jabuti” inserido em uma medida provisória (MP) sobre o setor de eventos.
Dias antes, Lula sancionou lei semelhante, que troca o indexador pelo qual a Finep remunera os recursos recebidos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). A medida havia sido introduzida pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL) em uma MP, em meados do ano passado, mas ela caducou e foi inserida agora em outra MP aprovada pelo Congresso.
Para Alberto Ramos, diretor de pesquisa para a América Latina do Goldman Sachs, a sinalização do governo de ampliar o papel dos bancos públicos é clara. “Mais que um risco, é quase uma realidade já. A única incerteza é sobre o grau em que isso vai ocorrer”, afirmou.
Segundo ele, qualquer crédito subsidiado via bancos públicos leva a uma má alocação de recursos e os investidores já estão cautelosos com esse “ativismo semifiscal”. “Talvez em intensidade seja menor, mas é o mesmo livro de política implementado pela Dilma.”
Tony Volpon, ex-diretor do Banco Central, também disse acreditar que algum grau de interferência nos bancos públicos vá ocorrer. “O governo eleito é um governo de esquerda, que acredita que essas instituições têm um papel importante para o crescimento da economia”, afirmou.
Um aspecto importante a se analisar, segundo Volpon, é de onde vem o funding dos bancos estatais. Se eles se financiam via mercado, obrigatoriamente precisam ter um mínimo de disciplina também no lado dos ativos. Agora, se houver aporte do governo, com subsídios, isso acabará gerando distorções de preço nos mercados, sem falar no impacto nas contas públicas. “Por enquanto não está acontecendo isso.”
É preciso separar a narrativa de ações concretas, disse Leandro Vilain, sócio da Oliver Wyman Brasil na área de serviços financeiros. Na visão dele, os dados ainda não permitem inferir que há um maior uso dos bancos públicos. “Mas sem dúvidas essas narrativas não ajudam”, ponderou. De acordo com o executivo, hoje o ambiente é menos fértil para uma maior ingerência nas instituições públicas, com avanço na Lei das Estatais, na governança desses bancos e mesmo uma maior fiscalização do Tribunal de Contas da União (TCU). “Ninguém defende uma TJLP [taxa de juros antigamente usada pelo BNDES] completamente subsidiada. A história mostra que isso não deu certo. Mas isso também não quer dizer que não possa haver algum tipo de subsídio para linhas de pequeno montante, para setores bem específicos, como parte de uma política de governo.”
Um uso maior do crédito público pode se dar de várias formas, segundo Vilain: com linhas direcionadas, decisões regulatórias ou “na marretada”. Mas pode levar a consequências como desancoragem das expectativas de inflação, fuga de capital e alta do dólar. “Estabelecer um teto de juros para algumas linhas, como se especula para o cartão de crédito, é como tabelar o preço da carne. O efeito vai ser uma restrição na oferta.”
Rubens Sardenberg, diretor de economia, regulação prudencial e riscos da Febraban, ressaltou que há uma desaceleração do crédito livre e que os dados mais recentes sugerem que esse movimento pode estar além do que seria esperado pelo padrão sazonal. Ele destacou que o crédito a pessoa jurídica teve um momento difícil em fevereiro, após o episódio da Americanas, mas os números de março sinalizam certa recuperação.
Pesquisa realizada pela Febraban prevê crescimento de 7,9% no crédito geral neste ano e, segundo Sardenberg, há riscos de alta e de baixa nessa projeção. “Pode-se dizer que houve uma piora do ambiente macro, mas por outro lado os dados atuais de atividade vieram melhores que o esperado”.
Para Volpon, eventuais estímulos fiscais e o uso dos bancos públicos podem gerar uma desarmonia entre as políticas monetária e fiscal. “A gente entra nessa discussão de não haver uma harmonia tão grande entre as duas, porque hoje o BC tem autonomia formal, mas as políticas de crédito podem estar atuando contra a política monetária.”