O mercado de crédito dá sinais de mudança e ensaia deixar para trás o ambiente favorável construído pelas medidas para apoiar a economia durante a pandemia. Desde março o Banco Central (BC) vem elevando a taxa básica (Selic) no esforço até agora infrutífero de segurar a inflação. A reboque, os juros do crédito vêm subindo, em meio a indícios de redução da oferta de recursos e preocupação com o efeito da política monetária mais restritiva na desaceleração da economia. Exatamente nesse momento, o governo lança o projeto de lei do Novo Marco das Garantias, na expectativa de alavancar as operações de crédito e reduzir os juros.
Após seis altas consecutivas, a Selic saiu do piso de 2% para os atuais 7,75% ao ano. A perspectiva é de novas elevações em direção aos dois dígitos. Os juros do crédito estão subindo há quatro meses e a taxa média dos empréstimos com recursos livres, não vinculados ao funding da poupança nem do BNDES, alcançou 32,8% ao ano em outubro.
Os bancos também adotaram outras medidas de cautela: elevaram o spread praticado e reduziram o prazo médio das operações. Essas medidas são claramente preventivas dado que a inadimplência está estável no mercado. Ajudou esse bom comportamento as renegociações realizadas depois da pandemia, que beneficiaram 17 milhões de contratos, segundo o colunista Jairo Saddi (Valor 29/11). As perspectivas pessimistas para a economia em 2022, porém, alimentam a expectativa de deterioração da inadimplência.
Além disso, a alta dos juros está pegando a população endividada. Os dados mais recentes do Banco Central referem-se a agosto e mostram que 59,9% da população está endividada, percentual que recua para 37% se for excluído o financiamento imobiliário. O comprometimento da renda total com o pagamento de dívidas é de 30,1% e, sem financiamento imobiliário, de 27,6%. Dados mais recentes, mas com outra metodologia, da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), realizada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), vão na mesma direção. O número de brasileiros endividados cresceu pelo 11º mês seguido em outubro, chegando a 74,6% das famílias, novo patamar recorde. O número representa uma alta de 0,6 ponto em relação a setembro, e de 8,1 pontos na comparação com outubro do ano passado. O percentual de famílias com dívidas ou contas em atraso atingiu 25,6%.
Nesse contexto, surge o projeto de lei do governo que promete revolucionar o sistema de garantias de crédito com mais flexibilidade para o uso das garantias. A expectativa é que possa reduzir os juros e destravar entre R$ 8 trilhões e R$ 12 trilhões em novas operações de crédito - quase o triplo do estoque atual de R$ 4,5 trilhões. O projeto de lei permite que um mesmo bem possa caucionar mais de um empréstimo, se seu valor permitir, e busca agilizar a recuperação dos recursos em caso de calote. Para isso, serão criadas as Instituições Gestoras de Garantias (IGGs), que vão receber os bens de pessoas e empresas, avaliá-los e determinar quanto crédito poderá ser tomado. A IGG ficará responsável por repassar a garantia ao banco e, em caso de inadimplência, poderá vender o bem e liquidar o empréstimo.
A dificuldade para a recuperação das garantias é um dos fatores que inibe esse tipo de operação no Brasil, atualmente concentrada no financiamento de imóveis e de automóveis. O índice de recuperação de garantias é inferior a 15% e leva em média quatro anos, segundo dados da Febraban, elevando o spread bancário e, portanto, os juros. O governo aposta que o novo modelo vai resolver esses problemas, além de alavancar o crédito.
Mas o projeto de lei ainda precisa passar pelo Congresso Nacional e, na melhor das hipóteses, pode ser aprovado em 2022, apesar da instabilidade característica de um período eleitoral. Mesmo que isso ocorra no próximo ano, deve levar algum tempo para o mercado se organizar e para deslanchar a nova prática. O próprio BC está consciente disso. A ata do Comitê de Estabilidade Financeira (Comef), divulgada na semana passada, nota que o maior aperto das condições financeiras globais e as incertezas econômicas e fiscais, além das turbulências políticas, devem aumentar a preocupação com solvência das empresas e das famílias no próximo ano e frear o crédito.