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16/03/2016

Crédito privado descola do CDI em cenário adverso

O ambiente recessivo e a deterioração das perspectivas macroeconômicas para este e o próximo ano acenderam um sinal de alerta aos fundos que investem em crédito privado, que já começam a ter a rentabilidade afetada pelo aumento do risco relacionado aos emissores.

Sérgio Tauhata e Alessandra Bellotto

O ambiente recessivo e a deterioração das perspectivas macroeconômicas para este e o próximo ano acenderam um sinal de alerta aos fundos que investem em crédito privado, que já começam a ter a rentabilidade afetada pelo aumento do risco relacionado aos emissores. Levantamento da provedora de informações financeiras NetQuant com 2,3 mil portfólios com mais de 30% dos recursos alocados em papéis de empresas indica que, entre fevereiro de 2015 e o mesmo mês deste ano, os retornos de 45% das carteiras ficaram abaixo do Certificado de Depósitos Interfinanceiros (CDI) no período, de 13,59%.

A piora das condições tem encolhido o fluxo de caixa e pressionado as dívidas das empresas. A crise política, que adicionou combustível ao cenário de incertezas, afasta investidores e derruba a confiança do setor produtivo e de consumidores. Como consequência, os spreads, ou seja, o prêmio pago pelos papéis privados, como as debêntures, no mercado secundário vem crescendo. Essa alta, na marcação a mercado, tem derrubado o valor dos títulos e consequentemente das cotas dos fundos.

O Índice de Debêntures Anbima, que mede a evolução dos preços de mercado dos papéis classificados como grau de investimento, mostra que o rendimento das debêntures indexadas ao CDI ficou em 66% do referencial em janeiro, menor percentual da série histórica, iniciada em dezembro de 2009, quando o retorno estava em 143%. Em fevereiro, houve uma pequena recuperação, para 72%.

Segundo Sandro Baroni, gerente de preços e índices da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), a carteira passou a render abaixo do CDI pela primeira vez em novembro do ano passado, com o movimento de abertura dos spreads. De lá até fevereiro, mostra levantamento da Anbima, os prêmios pagos acima do DI passaram de 1,40 a 2,11 pontos. Neste início de mês, nota Baroni, houve uma acomodação.

O descolamento das carteiras em relação ao CDI pode ser tanto maior quanto o risco de crédito dos papéis detidos. Segundo Maria Paula Cicogna, consultora da Luz Soluções Financeiras, carteiras que investem em títulos sem grau de investimento, considerados mais arriscados e, portanto, com prêmios maiores, começam a ter problemas com a alta dos spreads e a baixa liquidez dos ativos detidos. "Os fundos high yield tiveram perdas consideráveis de rentabilidade com a piora nas condições de crédito, tanto em termos de taxa, quanto de acesso ao crédito", afirma Maria Paula. A especialista destaca ainda que a liquidez limitada desses papéis levou a prejuízos em momentos nos quais os gestores precisaram vender ativos.

Um caso específico impactou o mercado de uma maneira geral. Segundo um gestor que pediu para não ser identificado, a venda de uma grande carteira de papéis privados pelo BTG Pactual levou a uma desvalorização ampla de ativos no mercado secundário. Segundo ele, o banco teve de se desfazer dos títulos a "qualquer preço" para fazer caixa e honrar uma enxurrada de pedidos de resgate, o que ajudou a desvalorizar carteiras de diversos fundos.

Do lado dos emissores, as dificuldades ficam evidentes com a onda de repactuações das condições de debêntures. Com alta da alavancagem e menor fluxo de caixa, as companhias têm sido obrigadas a rever cláusulas de vencimento antecipado, indicadores financeiros e até pedir aprovação para adiamento de desembolsos de juros e amortizações. Neste ano até 10 de março, o site da Anbima registra um volume de comunicados relacionados aos temas três vezes superior ao do mesmo período de 2015. São 37 proposições ante apenas 12 um ano antes.

Outro indicativo das dificuldades enfrentadas pelo setor privado é o número recorde de recuperações judiciais. Segundo a Serasa Experian, a quantidade de pedidos cresceu 55% em 2015 ante o ano anterior. As quase 1,3 mil empresas que deram entrada no processo definem o pior ano desde 2006, após a entrada em vigor da nova Lei de Falências. Nos dois primeiros meses do ano, o número de pedidos de recuperação judicial cresceu 116,4% em relação ao mesmo período de 20015, para 251.

Algumas carteiras já enfrentam eventos de crédito decorrentes de pedidos de recuperação judicial dos emissores, caso do fundo BB Renda Fixa Estratégia II Private 

Para Marcelo Guterman, especialista em produtos da Western Asset, o desempenho do mercado brasileiro de crédito tem relação direta com a recessão por que passa o país. "Queda do PIB de 4% por dois anos seguidos naturalmente gera algum estresse nos balanços das empresas, por meio queda do faturamento, alavancagem alta. As empresas tomaram muita dívida", diz.

Os bônus privados negociados no exterior já estão sofrendo com a alta dos spreads, assim como o mercado local. "Vamos ver uma quebradeira generalizada? Não", ressalta. Na avaliação de Guterman, pode haver algum calote pontual, assim como alguns setores e empresas tendem a sofrer mais, porque estão bastante alavancados. "Setores cíclicos como os de varejo e imobiliário, por exemplo, podem estressar mais porque dependem do ciclo econômico local", diz.

A piora da percepção de risco, contudo, tem impacto sobre a parte de crédito dos fundos, mas, ressalta, se o gestor segurar os papéis, eles passarão a render mais lá na frente. "Alguns fundos podem rodar abaixo do CDI um ou outro mês, mas depois se recuperam", diz. Na visão da Western, vários dos spreads estão subindo acima do que deveriam se considerados os fundamentos.

Conforme Arturo Profili, sócio da Capitânia, outro complicador para o crédito privado foram os rebaixamentos de rating. "Como o Brasil tomou um downgrade e o custo para os tomadores aumentou, em meio a um cenário de deterioração de fluxo de caixa, foi quase como se 95% do Brasil também tivesse tomado downgrade de rating", afirma.

De acordo com o gestor, a crise afeta o mercado de uma maneira ampla e tem obrigado as empresas a repactuar as condições das dívidas emitidas. "Quase 100% [do mercado] teve de rediscutir alguma condição de debênture. E nesse cenário quanto antes sentar na mesa melhor. Entre metade e dois terços das transações estão com algum tipo de covenant, por exemplo, [rebaixamento de] rating."

Profili explica que, nesse ambiente de estresse, a Capitânia redobrou o acompanhamento da saúde das companhias investidas. "Em lugar de ir ao médico mensalmente passamos a ir semanalmente, ou seja, fazer as análises quase que contínuas para identificar sinais de febre", diz.

Na gestora do Brasil Plural, o acompanhamento das condições do mercado e dos papéis tem sido diário. "Temos reuniões diárias de crédito e semanais de comitê de crédito. Além disso, em todas as empresas que a gente atua projetamos diferentes cenários de estresse, como, por exemplo, queda na receita ou volatilidade no câmbio", afirma Leonardo Breder, sócio e gestor da asset. Ele conta que a estratégia atual da casa tem sido encurtar o prazo médio dos portfólios. "Mesmo nessas empresas de que a gente gosta muito, que têm estrutura de capital sólida e receita operacional estável, a gente não está alongando. Com a abertura de spread mesmo esses papéis mais curtos estão valendo a pena", pondera.

Na avaliação de Alexandre Mathias, responsável pela área de desenvolvimento de produtos e negócios da Bradesco Asset Management (Bram), o movimento de abertura de spreads nos títulos privados de dívida tem dado sinais de trégua nas últimas semanas. "Desde começo do ano, nas debêntures, houve um processo de abertura de preços até fevereiro, mas a gente está vendo, na margem, sinais de acomodação desse processo", afirma.

FONTE: VALOR ECONôMICO