A retomada do ciclo de alta da taxa básica de juros, até então vista pela última vez em 2019, traz uma nova perspectiva no processo de tomada de decisão dos investidores no universo de investimentos. Com as recentes revisões de agentes do mercado para a Selic, que agora estimam uma taxa de ao menos 7,5% no fim do ano, a renda fixa voltou a atrair a atenção dos brasileiros. E, em paralelo à retomada da categoria, os ativos de crédito privado, como as debêntures e os Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI) e do Agronegócio (CRA), têm visto um volume robusto de emissões de papéis e de novos adeptos.
Conforme Camilla Dolle, analista de renda fixa da XP Investimentos, não há dúvidas sobre o aumento do interesse pela renda fixa como um todo, sobretudo em razão do ciclo de alta da Selic. "Historicamente foi assim e, mais uma vez, estamos vendo a volta do apetite dos investidores por esses ativos”, afirma.
A tendência de recuperação do setor de renda fixa e de crédito privado deve continuar até o próximo ano, avalia Rodrigo Beresca, analista de soluções financeiras da Ativa Investimentos, mas não da forma acelerada como vem acontecendo. Isso porque 2022 será um ano de eleição e, conforme o profissional, o Comitê de Política Monetária (Copom) não deve fazer grandes movimentações na taxa de juros básica da economia.
"O Brasil vai passar por um momento ainda mais polarizado que hoje, então é normal que o período eleitoral seja marcado por maior volatilidade no mercado", afirma. "Pensando na forte oscilação diante do aumento de incertezas, os ativos de renda fixa que estão pagando taxas mais altas tendem a se tornar opções atrativas para investir", complementa Beresca.
E, como interesse comum de qualquer investidor, se tem uma coisa que o brasileiro não abriu mão foi da rentabilidade. Ulisses Nehmi, presidente da Sparta, avalia que, em razão da forte volatilidade vista no ano passado nos investimentos em geral, as pessoas ficaram mais preparadas para enfrentar cenários de maior oscilação. Assim, o aumento do apetite ao risco leva o investidor a buscar soluções mais ousadas e, neste cenário, o crédito privado acaba sendo uma oportunidade, visto que não tem a variação do mercado acionário, por exemplo, mas entrega retornos acima de outros títulos de renda fixa.
“Existem ativos de crédito privado no mercado que estão com uma remuneração em relação ao título público bem maior do que o observado nos últimos anos. Na média, estão rendendo 2% do nível desses títulos, um patamar que não víamos há tempo”, comenta o executivo. Vale lembrar, no entanto, que trata-se de uma média geral do patamar atual e, portanto, pode ser concretizada ou não, visto que, apesar de não ser um ativo de renda variável, o crédito privado tem alguns riscos embutidos, como de crédito, prazo de vencimento e de mercado.
O primeiro consiste na possibilidade de a operação da própria empresa não dar certo. Isso porque, por ser uma emissão feita por firmas, o risco do crédito privado é maior do que o de títulos do Tesouro Nacional ou títulos bancários, que contam com a garantia do Fundo Garantidor de Crédito (FGC).
Fora o risco de crédito, tem o de liquidez, visto que, caso a pessoa queira resgatar o capital antes do vencimento do título, ela pode ser penalizada em uma marcação a mercado no momento da venda no mercado secundário, a depender do valor atribuído ao papel na data.
E, por fim, há ainda o risco de mercado, turbinado especialmente pela alta da inflação, agitações políticas e ruídos fiscais que estão voltando ao radar com as discussões sobre a PEC dos precatórios e o Auxílio Brasil. Ou seja, questões que têm impacto direto no mercado e podem afetar também a indústria de crédito privado.
Quando olhamos para trás, entre janeiro e julho deste ano, porém, de fato os papéis de crédito privado aparecem em uma trajetória de resultados acima de outros títulos. Para efeito de comparação, o IMA-S, que representa uma carteira de títulos públicos remunerados pela Selic, as chamadas Letras Financeiras do Tesouro (LFTs), rendeu 1,68% no intervalo.
No caso do CDI, que acompanha de perto a taxa básica de juros e serve de referência para as aplicações conservadoras, a rentabilidade foi de 1,63%. Agora, ao observar o IDA-DI, índice que espelha o comportamento de uma carteira de debêntures atreladas à taxa DI, o desempenho surpreende, com ganhos de 3,77%, mais que o dobro do CDI em igual período.
Ao olhar o horizonte dos últimos 12 meses, a diferença entre o retorno do IDA-DI e do CDI também chama atenção, com o primeiro em destaque frente ao CDI. Neste intervalo, o índice dos títulos de crédito privado apresentou valorização de 6,35%, contra os 2,70% registrados pela principal referência das aplicações de renda fixa, ou seja, uma diferença de 3,65%.
Marcelo D’Agosto, economista e blogueiro do Valor Investe, explica que o IDA-DI se destacou frente ao CDI devido a uma corrida por títulos em razão do aumento do juro e, em paralelo, da volatilidade do mercado. “O brasileiro quer sair do risco da renda variável para assumir outro tipo de risco na renda fixa, que é o das empresas que emitem títulos de dívida”, comenta.
Ele ressalta, no entanto, que rentabilidade passada não é garantia de ganhos no futuro. “A premissa do investidor é a de que o mercado de crédito privado vai continuar rendendo o dobro do CDI, mas ele deve ter em mente que isso pode não acontecer se houver uma nova interrupção e as empresas não conseguirem renovar os títulos, como ocorreu no início do ano passado com a chegada da pandemia”, acrescenta.
Exemplo de que o desempenho atual do mercado de crédito privado não é sustentável, complementa D’Agosto, trata-se da diferença entre o próprio IDA-DI e o CDI nos últimos anos. Isso porque, ao analisar o intervalo entre 2015 e 2018, período em que não houve nenhum cenário adverso, como uma pandemia, o IDA-DI rendeu cerca de 1% a 1,5% acima do CDI. Entre 2019 e 2020, os títulos sofreram desvalorização porque ficaram mais caros.
Neste ano, porém, o IDA-DI está rendendo quase 4% acima do CDI, uma situação atípica para a categoria. “A performance do índice está muito diferente do histórico, o que mostra que tal tendência de valorização não deve se repetir, já que os títulos de dívida das empresas estão pagando, em média, CDI+1,5%, e não algo perto de +4%”, afirma.
A consistência da valorização dos títulos de crédito privado é posta em xeque por D’Agosto justamente porque o aumento da demanda, que acirrou a diferença entre o IDA-DI e o CDI nos últimos meses, também reduz o prêmio pago por esses ativos. E, conforme especialistas, tal movimento de aperto das taxas já pode ser observado entre os títulos disponíveis no mercado.
Camilla, da XP, comenta que, recentemente, foi possível ver uma compressão das taxas que os papéis pagam acima de um título público de mesma duração. “Isso aconteceu porque tinha uma demanda muito grande por títulos de crédito privado e as emissões não estavam conseguindo acompanhar o aumento de interesse. E, quando temos uma demanda maior que a oferta, há um efeito de compressão sobre o prêmio”, explica.
Para saber se a busca por esses ativos vai continuar encolhendo as taxas, porém, complementa a analista, é preciso ver como vai estar a retomada de emissões dos títulos de dívida diante do aumento de interesse nos próximos meses.
No que diz respeito ao volume de novas emissões, bons ventos parecem pairar sobre a indústria de crédito privado. Ou, nas palavras de Camilla, a categoria vive, agora, um cenário inverso ao do começo da pandemia.
No início do ano passado, os prêmios dos papéis estavam altos por conta dos riscos ainda desconhecidos da covid-19, motivo que levou à desvalorização dos títulos. “Vimos empresas emitindo dívida para fazer reforço de caixa com captação de papéis mais curtos porque os de longo prazo estavam oferecendo prêmios muito altos”, explica a analista.
Com a perspectiva de retomada, entretanto, o volume de emissões voltou a subir, sobretudo as de debêntures incentivadas, ao mesmo passo que o prazo médio dos títulos tornou a esticar. "As empresas já estão mais abertas para emitir a prazos mais longos e os prêmios, que ano passado estavam muito abertos, diminuíram", complementa.
Por ora, dados da B3, a bolsa brasileira, mostram que o mercado de crédito privado está a todo vapor. Entre janeiro e agosto deste ano, o volume de emissões primárias de títulos de dívida de empresas superou o patamar registrado no mesmo período do ano passado - foram R$ 134 bilhões contra R$ 62 bilhões, respectivamente. Não bastasse, o número também ultrapassa os valores registrados em 2019 e 2018.
Em paralelo à retomada do mercado de crédito privado como um todo, a Sparta Investimentos registrou, em junho e julho, recorde de análise de emissões de títulos. Nehmi, presidente da gestora, atribui o atual momento da categoria a uma corrida contra o tempo por parte das empresas. "Elas estão se antecipando para fazer a captação antes do período eleitoral para evitar os riscos que já estão embutidos no ano que vem", comenta.
O executivo destaca, porém, que este movimento é interessante para o investidor, visto que o aumento de emissões de diferentes empresas valoriza mais o dinheiro de quem investe e, além disso, as firmas acabam tendo que pagar um prêmio maior.
Além do crescimento robusto do volume de novas emissões, os números de captação também têm sido destaque entre os títulos disponíveis no mercado. Na Ativa Investimentos, por exemplo, as aplicações em crédito privado saíram de R$ 429 milhões no segundo semestre de 2020 para R$ 825 no primeiro semestre deste ano, um salto de 92%.
Ainda, na comparação entre intervalos mais estreitos, o volume de captação aumentou 15,7% entre o primeiro e o segundo trimestre de 2021, de R$ 381 milhões para R$ 444 milhões.
Para os adeptos que estão chegando agora, Nehmi faz uma ressalva: quem entra antes se beneficia mais. "Mês após mês temos visto o prêmio pago pelos títulos diminuir um pouco, embora não exista um cenário de euforia. O preço dos ativos está subindo, mas não em um nível exagerado, está se recuperando da pandemia em um ritmo saudável. E isso é bom para quem já investiu", afirma.
O presidente da Sparta comenta ainda que até pode ser que haja uma compressão das taxas em algum momento, mas, pelo menos por ora, os ativos estão em um patamar acima da média da indústria de crédito privado. "Para as empresas está em um grau ok para tomar recursos e, para o investidor, a categoria está com uma taxa atrativa", finaliza.