Uma das operações mais aguardadas do mercado imobiliário nacional aconteceu em julho deste ano, quando a Cyrela arrematou um terreno de 9.000 metros quadrados da antiga sede de Furnas, no Rio de Janeiro, durante um leilão realizado na B3. A construtora levou o terreno, que ocupa um quarteirão inteiro em Botafogo, um dos bairros mais nobres da cidade, por 74 milhões de reais.
O caso é emblemático do novo momento da construção civil no país. A venda do imóvel, que estava desocupado havia dois anos, foi estruturada pelo BNDES sob encomenda de Furnas, subsidiária da Eletrobras, cuja privatização foi realizada em junho. Também foi a primeira vez que um ativo imobiliário da União foi comercializado na bolsa de valores. A transação faz parte da lógica de aliviar o Estado do peso (e dos custos) de administrar bens muitas vezes sem uso.
Segundo o Ministério da Economia, a União possui cerca de 750.000 imóveis em todo o país — e uma parte está inutilizada ou é explorada comercialmente de forma irregular. É verdade que há muito a ser feito: foram vendidos pouco mais de 500 ativos imobiliários da União nos últimos quatro anos. O mercado, no entanto, vê com bons olhos a iniciativa.
Não raro, esses ativos se localizam em áreas valorizadas, como é o caso do terreno de Furnas. Neste mês, o estado do Rio Grande do Sul deverá realizar o aguardado leilão do Cais Mauá, em Porto Alegre, que ocupa uma área de quase 190.000 metros quadrados. A perspectiva de investimentos é de 355 milhões de reais em revitalização e urbanização do local. Outros projetos semelhantes deverão sair do papel até o final do ano, como o antigo Canecão, um marco do Rio de Janeiro fechado em 2010. A casa de espetáculos, que pertence à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), deverá ser leiloada e transformada em um centro cultural e de entretenimento.
“São novas oportunidades em um setor caracterizado por uma demanda reprimida e que retomou fortemente o crescimento no ano passado”, diz Carlos Libera, sócio da consultoria Bain & Company. A grande aposta, entretanto, é em relação ao mercado de imóveis residenciais e de reformas de casas, que ganhou impulso em 2021 com um cenário de juros mais favorável e medidas para aliviar o efeito econômico da pandemia, como o auxílio emergencial.
Só a Cyrela, uma das maiores construtoras do país, lançou 54 empreendimentos imobiliários em 2021, com vendas ao redor de 4,8 bilhões de reais, 43,6% mais do que em 2020. Neste ano, apenas de abril a junho foram lançados 13 imóveis que, somados, apresentam potencial de venda de 2,3 bilhões de reais, 20% acima do registrado no mesmo período do ano passado. “São grandes projetos, que têm representado o aquecimento da construção civil”, diz Orlando Pereira, diretor comercial e de vendas da Cyrela.
O país ganhou 153.726 imóveis em 2021, resultado 27% superior ao de 2020, no melhor desempenho do setor desde 2014, segundo a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc). Especialmente sensível às condições macroeconômicas, o mercado se beneficiou de um cenário de juros baixos em 2020 e nos primeiros meses de 2021, com a Selic a 2%. Neste ano, a previsão de uma taxa de inflação de 6,8% até dezembro, inferior às expectativas iniciais, e estimativas de um Índice Nacional de Preços ao Consumidor
Amplo (IPCA) de 5% em 2023, segundo projeções do Banco Central, também têm injetado boas perspectivas no setor. Ao mesmo tempo, projetos de infraestrutura de transportes e saneamento básico vêm movimentando os canteiros de obras.
Sozinho, o setor de tratamento de água e esgoto gerou quase 50 bilhões de reais de investimentos desde 2020 mediante a realização de 18 leilões. Apenas a concessão da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae), realizada no ano passado, movimentou 31,2 bilhões de reais. No ano que vem, deverão acontecer outros sete leilões, com destaque para blocos de municípios no Ceará, em Alagoas e no Paraná, e para a prefeitura de Porto Alegre. Juntos, deverão gerar 16,4 bilhões de reais em investimentos, segundo a Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon).
Até 2033, deverão ser investidos 600 bilhões de reais no setor, segundo a entidade. Cerca de 408 bilhões de reais deverão seguir diretamente para a construção civil, de acordo com a Abcon. Para um setor no qual os investimentos se situaram ao redor de 12,5 bilhões de reais por ano entre 2015 e 2019, antes da aprovação do novo marco, as perspectivas são promissoras.
“O Brasil precisa de muita obra de saneamento, já que somos deficitários no setor em razão de um atraso histórico na ampliação do serviço”, diz Ilana Ferreira, superintendente técnica da Abcon. Ainda há muito a ser feito: cerca de 100 milhões de brasileiros não têm acesso à coleta de esgoto, e 35% da população não conta com água potável.
O marco regulatório do saneamento, aprovado em 2020, atraiu mais investimentos privados para o setor ao permitir a renovação automática de contratos entre prefeituras e companhias estaduais de saneamento apenas nos casos em que o município oferece 90% de cobertura no fornecimento de água potável e 60% em relação à rede de esgoto — menos de 10% das cidades brasileiras se enquadram nessas condições. Com isso, houve um boom de leilões. Mesmo assim, falta um longo caminho a ser percorrido: o custo da universalização do saneamento chega a quase 900 bilhões de reais até 2033, segundo a Abcon. “O lado bom é que há muita obra a ser feita e empregos a serem gerados”, afirma Ferreira.
Empresas como a Votorantim Cimentos, vencedora do setor Imobiliário e de Construção Civil da MELHORES E MAIORES 2022, vêm aproveitando as oportunidades. A companhia registrou um lucro recorde no ano passado, de 1,63 bilhão de reais, 244% acima do valor obtido em 2020, de 472 milhões de reais. A Votorantim Cimentos vendeu 37,2 milhões de toneladas de cimento nos países em que atua, como Brasil, Bolívia, Canadá, Espanha e Estados Unidos. Metade desse resultado veio do Brasil, onde a companhia conquistou um faturamento de 10,3 bilhões de reais no ano passado, 30% mais do que em 2020.
“A demanda foi muito grande, acima do que o mercado esperava”, diz Hugo Armelin, diretor de vendas, marketing e operações de concreto no Brasil da Votorantim Cimentos. A maior procura por material de construção para reforma, motivada pelo desejo de melhorar a casa durante a pandemia, e obras de infraestrutura responderam por boa parte do aquecimento do setor. O auxílio emergencial representou outra porta de entrada para a aquisição de matérias-primas para obras residenciais: em 2020, depois do início do pagamento do benefício, as vendas de material de construção subiram cerca de 14%, segundo o IBGE.
Neste ano, o setor deve continuar crescendo. Estimativas da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC) apontam para uma expansão do mercado de 3,5%, saltando para um total de 178,5 bilhões de reais. O crescimento é bem-vindo, mas os números seguem distantes do pico de dez anos atrás, de quase 250 bilhões de reais por ano. Segundo projeções da CBIC, serão necessários oito anos para o setor atingir patamares semelhantes aos do início dos anos 2010, antes da recessão que encolheu o PIB em 9%, entre 2014 e 2017.
“Em momentos de crise econômica, a falta de perspectiva e indicadores como o aumento contínuo do desemprego e maior dificuldade em obter crédito prejudicam diretamente a construção civil”, diz José Carlos Martins, presidente da CBIC.
A conjuntura internacional é outro fator de preocupação. Neste ano, a inflação da construção civil, calculada pelo Índice Nacional do Custo da Construção (INCC), bateu no teto. O acumulado dos últimos 12 meses chegou a 11,2%. Em 2020, o índice estacionou em 8,6%, e em 2019 ficou em 4,1%. Os desarranjos nas cadeias globais de suprimentos, primeiro com a pandemia de covid-19 e depois com a guerra na Ucrânia, são as variáveis com maior peso nessa equação. Só neste ano, o preço do carvão e do minério de ferro, matérias-primas para a fabricação do aço, essencial na construção civil, cresceu significativamente.
Na Europa, o setor deverá crescer apenas 2,3% neste ano em razão da alta do custo dos insumos associada à guerra na Ucrânia e às sanções à Rússia.
O carvão aumentou 137% desde o início do ano com a redução do uso de gás natural fornecido pela Rússia e a maior necessidade de queima de combustíveis fósseis na União Europeia. Já a tonelada do minério de ferro deverá encerrar 2022 ao redor de 90 dólares, segundo projeções de mercado, depois de ser negociado a mais de 150 dólares em março, logo depois do início do conflito na Ucrânia e de novas restrições na China por causa da pandemia. Ao longo do primeiro semestre, os preços flutuaram ao redor de 130 dólares, bem acima dos 88 dólares do final de 2019, antes da pandemia.
Cotadas em dólar, as commodities também sofrem diretamente com o peso do câmbio. Nesse cenário, o mercado vê com cautela as perspectivas para os próximos anos, embora as projeções sigam com viés de alta. “As obras e a estimativa de valores alocados são definidas com antecedência, já que os ciclos da construção são longos”, diz Libera, da Bain & Company. Por outro lado, o mercado é sensível à menor disponibilidade de crédito e ao aperto no orçamento das famílias, assim como a turbulências de toda ordem. Em dez anos, a construção civil saiu de uma participação no PIB de cerca de 6% para 2,6%, no dado de 2021. O setor começou a preparar o terreno para um crescimento sustentável. Agora, resta ampliar a relevância na geração de riqueza para o país.
Matéria pubicada em 13/09/2022