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18/02/2025

Da Faria Lima à Lapa: mais construtoras têm sanção por ‘desvirtuar’ prédios para baixa renda em SP (Estado de S.Paulo)

Ministério Público denunciou Prefeitura na Justiça por indícios de fraude em benefício fiscal; gestão Nunes afirma atuar para punir fraudes e empresas dizem seguir legislação

Mais seis empreendimentos da cidade de São Paulo foram avisados de que receberão sanção e multa por supostas irregularidades na destinação de prédios construídos com incentivos municipais para a habitação de baixa renda. O total de prédios com “despachos sancionatórios” chegou a 11 na sexta-feira, 14. Até o momento, os condomínios são majoritariamente de microapartamentos e em bairros de classe média da zona oeste. Em nota, parte das construtoras afirmou que seguiu a legislação municipal vigente à época (leia mais ao longo do texto).

Os novos casos envolvem edifícios construídos nos últimos anos em Pinheiros — incluindo na Avenida Brigadeiro Faria Lima —, na Lapa e na Vila Romana, na região oeste, e em São Lucas, na leste. As penalidades podem ser a “ponta do iceberg” de algumas centenas de empreendimentos em investigação pelo Ministério Público Estadual (MP-SP), que pediu na Justiça para suspender temporariamente a política de incentivo, sob alegação de “negligência” da Prefeitura.

Dias após a ação civil pública, a gestão Ricardo Nunes (MDB) divulgou as duas primeiras multas a construtoras, que totalizaram R$ 31 milhões. A Prefeitura diz coibir fraudes, destaca que instaurou 200 processos (referentes a 24,6 mil unidades) sobre possíveis irregularidades e reforçou regras para a destinação correta dos imóveis. Além disso, prevê contratar uma empresa de engenharia para uma auditoria, por cinco anos, no valor de R$ 43,7 milhões.

Os novos empreendimentos que receberam aviso de sanção são o Viva Benx Faria Lima (ligado ao Grupo Benx), o Vivaz Vila Romana (ligado ao Grupo Cyrela), o Today Pinheiros (do Grupo Canopus), o Metrocasa Lapa (da Metrocasa), o La Vista Lapa (da Rev³ Incorporadora e Floor) e o Monalisa Residencial (ligado à Presence Empreendimentos).

Os avisos de aplicação de “sanções de cancelamento a isenção ou redução do fator de interesse social, bem como a sua cobrança em dobro a título de multa” são assinados pelo secretário municipal de Habitação, Sidney Cruz. A maioria ainda tem prazo para recorrer, embora todos tenham sido notificados para prestar esclarecimentos ao longo do ano passado. Se não reverterem a situação, terão a multa calculada nos próximos dias.

Esses prédios receberam benefícios construtivos e fiscais para a construção de apartamentos voltados à população na faixa de três a seis salários mínimos. Na prática, contudo, as apurações apontaram indícios de venda e aluguel de parte das unidades para pessoas com maior renda ou em valores incompatíveis para a moradia popular. Uma parcela das empresas tem argumentado que compradores com maiores rendimentos se comprometeram a alugar as unidades à baixa renda.

Na investigação, além da documentada renda superior, foram identificadas situações variadas, como imóveis adquiridos por compradores únicos, mas registrados no nome de mais de uma pessoa. Há também casos de adquirentes que tinham mais de R$ 1 milhão em bens (um deles com mais de 20 imóveis), assim como outro em que a matrícula foi feita no nome de pessoa distinta da que comprovou a renda. Mais exemplos envolvem um homem que apresentou documentação de rendimentos de 20 anos atrás e, ainda, mais de uma unidade comprada pela mesma família.

Os demais empreendimentos que já receberam penalidades ou aviso de sanção envolvem Tecnisa, MF7, You,Inc e Consthruir. Procuradas, as empresas defenderam ter respeitado a legislação.

O pedido de liminar do MP é visto com preocupação no setor imobiliário. Avalia-se que, se a Justiça der a liminar, há potencial de impacto na dinâmica de aquisição de terrenos, na aprovação de novos empreendimentos para HIS e até na obtenção de “habite-se” para obras em conclusão.

Além disso, escritórios de advocacia especializados em mercado imobiliário têm defendido que há margem para judicialização por parte das autuadas, com possibilidade de cancelamento ou redução da multa. Na semana passada, as duas principais representantes do setor (Secovi-SP e Abrainc) entraram com pedido de “amicus curiae” na ação do MP-SP.

Na investigação, o MP-SP tem apurado empreendimentos em diversos bairros, incluindo áreas nobres como Vila Olímpia, Itaim Bibi e Moema. Defendeu que há “falta de controle” na disponibilização do benefício, com possível “enriquecimento ilícito” de construtoras.

Não há um número total de quantos imóveis receberam o incentivo para HIS e HMP na última década. Levantamento parcial da Prefeitura indica que, de agosto de 2019 a outubro de 2024, foram mais de 446,5 mil unidades beneficiadas. O montante total abrange 143,3 mil construídas e 303,1 mil licenciadas ou em fase de construção. Não se sabe, contudo, o quanto do total envolve possível desrespeito à finalidade prevista na lei.

No comunicado das primeiras multas, a gestão Nunes disse que as empresas “se beneficiaram de isenção de impostos para construir unidades habitacionais à população de baixa renda, mas desvirtuaram o processo comercializando moradias a pessoas que não se encaixavam na modelagem”. A Prefeitura é, entretanto, contrária à suspensão da política municipal defendida pelo MP-SP.

Como são os empreendimentos que receberam novos avisos de sanção?

Os seis empreendimentos com os novos despachos sancionatórios somam cerca de 1,1 mil apartamentos com incentivos para a baixa renda. Os demais com aviso de sanção e multa somam 974 unidades. Por enquanto, as penalidades têm envolvido a categoria de habitação social HIS-2 (três a seis salários mínimos).

O Viva Benx Faria Lima tem entrada pela Faria Lima (nas proximidades do Instituto Tomie Ohtake) e pela Rua Fernão Dias. Oficialmente, está no nome da M. A. R. Sintra, empresa ligada ao Grupo Benx — também envolvido com um dos dois prédios multados (o Viva Benx Lapa, da M. A. R. Hamburgo) e outro com aviso de sanção (Viva Benx Pinheiros, da M. A. R. Evora).

Os responsáveis pelo empreendimento da Faria Lima afirmaram seguir “rigorosamente a legislação vigente no desenvolvimento das unidades habitacionais de interesse social, atendendo aos critérios e normas estabelecidas pela Prefeitura, permitindo a venda para pessoas enquadradas nos critérios do HIS/HMP (Habitação de Interesse Social/Habitação de Mercado Popular), bem como a venda para locação social”. Também destacaram ter “compromisso com o cumprimento da lei e com as necessidades habitacionais da população”.

Ao todo, o edifício recebeu incentivos para a obra de 251 unidades HIS-2. Na apuração, a Prefeitura menciona anúncios de terceiros com preços incompatíveis para a moradia popular, como de revenda a R$ 650 mil e aluguel por R$ 3,9 mil. Fala-se em unidades de 24 m² comercializadas a até R$ 27 mil por m², enquanto a média da região seria de R$ 13,4 mil m².

Já o Today Pinheiros é da Cardeal Arcoverde Empreendimento Imobiliário, ligada ao Grupo Canopus. É localizado na Avenida Cardeal Arcoverde, a cerca de 10 minutos a pé da Estação Faria Lima, da Linha 4-Amarela do Metrô.

Em nota, a Canopus afirmou que “sempre seguiu rigorosamente os parâmetros legais da política municipal de produção privada de unidades HIS e HMP, incluindo aqueles em vigor no lançamento do empreendimento”. “A empresa mantém total transparência e colaboração com a Prefeitura, contribuindo com os documentos e informações solicitados, que comprovam a correta destinação das unidades. Seguimos prestando todos os esclarecimentos necessários”, completou.

O edifício tem 15 andares, com 223 unidades, das quais 168 são HIS-2. No ano passado, a defesa do grupo invocou a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) para não enviar todos os documentos exigidos para a comprovação da destinação das unidades.

Além disso, na apuração, a Sehab menciona anúncios de revenda na internet, com valores de R$ 490 mil a R$ 560 mil. “Entendemos que (...) estão acima do esperado para a faixa de renda em questão”, apontou em parecer. “Cabia à empresa acautelar-se de modo que a destinação das unidades se desse em conformidade com a lei”, diz em outro trecho.

Também na zona oeste, a CBR 064 Empreendimentos Imobiliários (ligada ao Grupo Cyrela) recebeu aviso de sanção pelo Vivaz Vila Romana. O condomínio fica na Rua Faustolo, a cerca de 10 minutos a pé da Estação Lapa, da CPTM. Ao todo, tem 319 unidades de HIS-2.

Na apuração, a Sehab identificou ao menos 19 casos de compradores com indícios de irregularidades. Também menciona anúncios na internet de revenda de apartamentos do prédio por valores entre R$ 400 mil e R$ 550 mil, também considerados valores incompatíveis com o perfil de habitação social.

“Qualquer interpretação que permita destinar a famílias que não sejam de baixa renda contraria a finalidade da política habitacional prevista em lei e, por consequência, afronta os princípios da legalidade e do interesse público”, diz um trecho do parecer.

Procurada pelo Estadão, o Grupo Cyrela disse que o “projeto foi desenvolvido e comercializado em conformidade com as diretrizes da Prefeitura e a legislação vigente, atendendo a todos os critérios exigidos”. “A empresa esclarece que está dentro do prazo legal para a defesa, que será feita de forma a reafirmar a conformidade de todos os processos”, completou.

O Metrocasa Lapa tem 201 unidades de HIS-2, na Rua Guaicurus, quase em frente ao Poupatempo. Dentre os casos apurados, estão o de compradores que comprovaram renda somada de R$ 18,5 mil mensais. “Há sinais robustos de que as unidades não foram alienadas para o público-alvo previsto em lei, ou seja, pessoas de baixa renda”, diz trecho do parecer.

O Estadão procurou a construtora Metrocasa, mas não obteve retorno até o momento. À Prefeitura, a empresa havia alegado que todas as unidades foram destinadas para o atendimento de pessoas dentro da faixa de renda do HIS-2.

O La Vista Lapa rendeu sanção à AF Lapa Desenvolvimento Imobiliário, ligado à Rev³ Incorporadora e à Floor. Também fica na Rua Guaicurus, a cerca de uma quadra da Estação Lapa, com 188 unidades. Na apuração, a Sehab menciona anúncios de revenda em plataformas virtuais de unidades por até R$ 540 mil, valores que considera incompatíveis com a faixa de HIS-2.

Em nota, os responsáveis pelo empreendimento responderam que foi comercializado de forma regular, no programa Casa Verde Amarela, para famílias de renda compatível e com financiamento dentro das regras da Caixa. “A empresa respeita o direito da Prefeitura de investigar os empreendimentos, mas tem convicção de que, após o devido exame da defesa a ser apresentada, não haverá qualquer sanção a ser aplicada”, completou.

Por fim, o Monalisa Residencial é o único empreendimento da zona leste que recebeu despacho sancionatório até o momento. É ligado à Presence Empreendimentos, na Rua João Batista Fernandes, a cerca de 10 minutos a pé da Estação Vila Tolstói, do monotrilho.

É composto por três pavimentos, com nove apartamentos ao todo. Na apuração, foi apontado que “não foi comprovada a correta destinação de todas as unidades licenciadas como HIS-2, havendo indícios, ainda, de destinação em desacordo ao previsto pela legislação municipal sobre o tema”.

Ao Município, no ano passado, a empresa havia alegado que havia comercializado cinco das nove unidades até então, assim como teria apresentado documentos de financiamento, declaração e matrículas. O Estadão não conseguiu contato com a responsável pelo empreendimento.

Como tem ocorrido a apuração de casos suspeitos?

No Município, os casos multados começaram a ser apurados há cerca de um ano. A fiscalização tem a participação dos cartórios, que passaram recentemente a notificar a Prefeitura e o MP sobre suspeitas. Essa identificação envolve especialmente a renda declarada dos compradores.

Os procedimentos de investigação no âmbito municipal foram estabelecidos pela Prefeitura em decreto e portaria no ano passado, publicados após a revisão do Plano Diretor, de 2023. Antes da publicação da sanção, há a apuração preliminar, a notificação do empreendimento e a elaboração de relatório final conclusivo.

Nos processos, a Prefeitura tem alegado que as incorporadoras e construtoras autuadas tiveram “múltiplas oportunidades” de apresentar documentação comprobatória. “A empresa recebeu diversas vantagens (isenção tributária de ISS e isenção urbanística referente à outorga onerosa) para, em contrapartida, alienar as unidades para famílias de baixa renda. Sem que o público-alvo tenha sido atendido, não se justifica a subsistência das benesses legais, como corolário do princípio da proporcionalidade e razoabilidade”, diz a justificativa usada em diversos casos.

Os empreendimentos voltados a esse tipo de apartamento têm descontos e até isenção de outorga onerosa (principal taxa cobrada do mercado imobiliário, que pode chegar à casa de milhões de reais em bairros valorizados). Há ainda diversos incentivos construtivos atrativos para o setor — que favorecem, em especial, construções verticais.

“Essa privatização dos lucros e socialização dos prejuízos é resultado de uma política pública mal formulada e que pode estar gerando vultosos prejuízos ao erário, sendo também fruto, inexoravelmente, da falta de avaliação técnico financeira. Nesse contexto, questões como eficácia, economicidade e eficiência jamais foram verificadas pelo requerido”, diz o MP. “É certo que vem ocorrendo em larga medida”, também assinalou.

À Promotoria, alguns compradores relataram que não foram informados de que tinham adquirido uma HIS. Além disso, há indícios de pessoas físicas e jurídicas que adquiriram os imóveis cientes de ser uma habitação de interesse social e, mesmo assim, anunciaram a revenda ou aluguel por valores incompatíveis para essa faixa de renda.

Na ação judicial, é mencionada expressão do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (Labcidade) da USP: “fake HIS”. Os pesquisadores da Faculdade de Arquitetura de Urbanismo têm falado em “social housing washing”, com possível maquiagem que daria indevida aparência de produção de moradia popular a uma política que incentivou imóveis utilizados por outra parcela da população.

No ano passado, após solicitar notificação dos cartórios, a Promotoria recebeu, em menos de dois meses, mais de 560 casos de imóveis e empreendimentos suspeitos. “Unidades colocadas à venda pelo mercado imobiliário como HIS e HMP têm metragem (em geral) entre 24 e 30 m², não raras vezes por valor que ultrapassa R$ 20 mil por metro quadrado. Essa tipologia e preço evidenciam-se claramente, em princípio, como sendo incompatíveis com famílias que recebem de três a seis salários mínimos”, aponta o MP na ação.

No pedido de liminar, o Ministério Público aponta que a política de incentivo precisa ser suspensa temporariamente até o desenvolvimento de “sistema seguro e eficiente de fiscalização pública de adquirentes e locatários” e a definição de controle de preços de venda de unidades e locações. Fala-se até na possibilidade de que seja descontinuada.

“O desenho da política municipal destinou ao mercado a tarefa de controlar se indivíduos e famílias que adquirem as unidades de HIS estão ou não inseridos adequadamente nos critérios de renda estipulados pela legislação”, argumenta a Promotoria. “Condicionam (viabilizam) a construção a um custo de empreitada bastante inferior, trazendo maior rentabilidade ao incorporador, nem sempre alcançando, porém, o objetivo da norma, que é o de aumentar a oferta de moradias a preços condizentes aos destinatários do citado programa social.”

A petição é assinada por Marcus Vinicius Monteiro dos Santos, Camila Mansour Magalhães da Silveira, Roberto Luís de Oliveira Pimentel e Moacir Tonani Junior, promotores de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital. 

FONTE: ESTADO DE S.PAULO