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20/06/2022

Devolução de imóveis preocupa setor de construção

Advogados afirmam que lei dos distratos, que define regras claras para o cancelamento dos contratos de compra e venda de imóveis na planta, deixa brecha para contestar valores

Por Circe Bonatelli 

O ambiente de crise econômica no Brasil - com inflação e juros altos por um período prolongado - está começando a esgarçar a lei dos distratos, criada há três anos e meio para definir regras claras para o cancelamento dos contratos de compra e venda de imóveis na planta. 

Advogados do ramo relatam que há decisões judiciais reduzindo as multas firmadas nos contratos dentro dos parâmetros legais no intuito de dar uma forcinha a consumidores em dificuldades financeiras. A situação preocupa incorporadoras, que veem o risco de se estimular as rescisões, gerar prejuízos e criar um clima de insegurança para investimentos em novos projetos. 

Para entender a questão, é preciso voltar um pouco no tempo. A lei dos distratos (lei 13.786/2018) surgiu depois que os cancelamentos de vendas explodiram a partir de 2014, quando o País entrou em recessão. Na época, não havia regras para esse tipo de situação, e as decisões judiciais obrigavam as empresas a devolverem 75% do valor pago pelos consumidores até a entrega das chaves. 

Nessa época, as incorporadoras perderam dinheiro, deixaram prédios inacabados e amargaram anos com resultados no vermelho. Foi isso que levou à lona a PDG Realty, incorporadora residencial que já foi a maior do País em número de lançamentos. 

Com a sanção da lei 13.786 ficou estabelecida a retenção de 50% do valor pago pelo consumidor até o momento da rescisão. Também foi definido que não haverá devolução da taxa de corretagem, que é de cerca de 5% do valor total do imóvel. 

Outro ponto importante: as incorporadoras ficaram autorizadas a devolver o dinheiro só depois de entregarem o imóvel e receberem o habite-se, de modo a evitar que ficassem sem dinheiro para terminar a obra (o que afetaria os demais consumidores do mesmo empreendimento). 

Todos esses pilares foram erguidos para inibir o distrato e proteger o caixa das empresas, evitando um colapso generalizado. E de fato, os cancelamentos de negócios caíram a partir daí. 

Piora da economia começa a provocar solavancos 

Agora, entretanto, o cenário é diferente. O mercado imobiliário está entrando numa fase de intensificação do término de obras após dois anos de recordes de vendas. E quem fechou a compra de um apartamento na planta tempos atrás está com mais dificuldades para obter o crédito imobiliário porque os juros dos financiamentos subiram bastante. Ou seja, o caldeirão reuniu os ingredientes para os distratos voltarem. 

"Acho que vai ter mais pedidos de distrato nos próximos meses. E tem uma máxima no direito de que é nas crises que as leis são testadas", alerta o sócio do escritório VBD Advogados e consultor jurídico de Secovi e Sinduscon, Olivar Vitale. "Por enquanto, a lei dos distratos está sendo aplicada, mas não na sua totalidade. Há exceções, e isso preocupa". 

Vitale menciona que há casos em que o Tribunal de Justiça de São Paulo tem optado por reduzir o valor da multa dos contratos quando interpreta que o porcentual está muito alto. Como a lei prevê até 50% de multa, é isso que as incorporadoras têm redigido nos documentos. Mas nem sempre o teto da multa é aceito pela Justiça. 

"Tem alguns casos em que os desembargadores não respeitam os contratos firmados alegando que a cláusula é abusiva. Estão rasgando a lei", afirma Vitale. Embora isso aconteça na minoria dos casos, ele vê o risco desse tipo de flexibilização se propagar à medida em que aumente a quantidade de casos de distratos daqui para frente. 

Os sócios Pedro Serpa e Daniel Gomes, do escritório SIDC Advogados, especializado em direito imobiliário, relatam que também estão notando um aumento nas demandas por esses tipos de processos e que já esbarraram com decisões judiciais baixando as multas previstas em contrato. Segundo eles, a lei 13.786 acabou deixando brecha para que os valores seja alvos de contestação nos tribunais. "O juiz tem a discricionalidade para reduzir a multa. Isso tira o caráter de segurança e previsibilidade que era esperado na construção da lei", lamenta Gomes. 

Os sócios acrescentam que esse tipo de brecha pode até criar situações em que o consumidor em dificuldades financeiras veja o distrato como uma boa solução, já que tem a chance de recuperar mais de 50% do valor pago acrescido da correção monetária por INCC ou IGPM. "Com inflação e juros em alta, optar pelo distrato pode ser até um negócio atrativo", estima Serpa. 

Na visão do advogado Marcelo Tapai, sócio do escritório Tapai Advogados, voltado a consumidores, é natural que haja flexibilização dos termos contratuais, pois é sabido que o juiz pode interferir quando vê desequilíbrio em favor a alguma das partes. 

Ele cita como exemplo o peso da multa na rescisão de um imóvel avaliado em R$ 500 mil. Nesse caso, o comprador geralmente pagou R$ 150 mil até receber a chave (30%) e outros R$ 25 mil (5%) como taxa de corretagem. Portanto, pagou um total de R$ 175 mil. 

Em um distrato na letra fria da lei, serão retidos R$ 75 mil (50% do valor pago pelo imóvel até as chaves) e os R$ 25 mil da corretagem, totalizando R$ 100 mil. Esse montante equivale a 57% do valor total desembolsado pelo comprador até aquele momento. 

"É um enriquecimento sem causa para a empresa. O consumidor não tem culpa que os juros dispararam no País. As pessoas que compraram o imóvel na planta e viram a sua situação financeira piorar estão ficando no meio do caminho. Para esses casos, a única solução é o distrato. Esse também é um risco da incorporadora que vendeu o imóvel na planta", argumenta Tapai. 

De olho nos números 

O volume de distratos teve um aumento considerável em termos nominais, mas segue relativamente estável como porcentual do total de unidades comercializadas. É preciso lembrar que o mercado teve recorde de vendas nos últimos dois anos. 

Foram registrados 9.701 casos de distratos em 2019, 12.556 em 2020 (alta de 29,5% na comparação anual) e 13.104 em 2021 (alta de 4,5%). Os dados são de pesquisa realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) em parceria com a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc). 

Em termos relativos, os distratos responderam por 11,8% das vendas em 2019, 11,1% em 2020 e 11,6% em 2021. Ou seja, apesar do aumento nominal, não se trata de uma crise generalizada. Os números ainda estão longe do pico de 2015, quando foram distratadas 19.050 unidades, ou 35,1% das vendas. 

 

A Abrainc foi procurada para comentar a situação das entregas de obras e dos distratos, mas não concedeu entrevista. 

(Matéria publicada em 19/06/2022)

FONTE: O ESTADO DE S.PAULO