O mercado imobiliário está voltando a ser um dos alvos preferenciais de gestoras especializadas em ativos estressados - também conhecidos como “distressed” ou de “special situations”, ou seja, de empresas que passam por problemas de liquidez. Uma conjunção de fatores vem gerando oportunidades no setor, que, desde setembro, registra aumento no volume de “distratos”, quando o comprador desiste do imóvel que comprou na planta. “Investimos muito nesse setor entre 2021 e 2022, e agora estamos retomando, prevendo uma nova onda de bons ativos disponíveis”, afirma Mateus Tessler, sócio da Jive Mauá, maior gestora de ativos inadimplentes do país.
O volume de distratos subiu de 12,7% no trimestre móvel encerrado em agosto para 15,2% entre setembro e novembro, segundo indicador divulgado mensalmente pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), em parceria com a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe). Entre os imóveis de médio e alto padrão, o índice saltou de 9,7% para 13,7%.
Marcelo Tapai, advogado especialista em direito imobiliário e sócio do Tapai Advogados, diz que já está percebendo aumento na procura para abertura de processos por distrato. Ele explica que, como o imóvel demora de três a quatro anos para ficar pronto, compradores que estão desistindo hoje assinaram contrato em 2020, período em que a Selic estava a 2%, e 2021, quando a taxa começou a subir em março.
Quando a unidade fica pronta, o comprador precisa de um financiamento no banco, agora mais caro. Segundo Celso Petrucci, economista-chefe do Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis Residenciais ou Comerciais de São Paulo (Secovi-SP), em 2020, o crédito imobiliário era contratado com uma taxa mediana de 7%. Hoje, sai a 10% ao ano. “Não tem plano B, se não tenho como quitar o imóvel, não posso levar”, diz Tapai, cujo escritório tem 4,5 mil processos de vários tipos contra construtoras.
Cristian Lara, sócio-fundador e diretor de Investimentos da Strategi Capital, lembra que, durante a pandemia, os custos dos insumos da construção civil subiram muito. Em 2021, por exemplo, o Índice Nacional de Custo da Construção (INCC), calculado pela Fundação Getúlio Vargas e que corrige o saldo devedor enquanto o imóvel está sendo construído, teve uma escalada e saiu de 4,13% em 2019 para 8,66% em 2020 e 14,03% em 2021. Em 2022 desacelerou para 9,40% e, em 2023, para 3,32%.
“Os empreendimentos têm tempo longo de maturação e, nesse período, ciclos econômicos podem mudar. É perverso porque você começa na bonança e vem um momento de baixa. No caso da pandemia, de uma hora para a outra tudo ficou mais caro e o país entrou num ciclo em que as regras do jogo mudaram, com diversos incentivos interrompidos”, resume Lara. “O que estamos vivendo agora é o pós-Covid.”
De acordo com Lara, a gestora agora está aumentando o foco no setor residencial porque identificou um aumento no número de obras com problema. O executivo afirma que a casa abrirá em breve captação de até R$ 350 milhões para seu segundo fundo de ativos “distressed” cuja principal aposta é o mercado imobiliário. Ele prevê uma “boa safra” nos próximos 24 meses. “É um dos mercados mais interessantes para explorar. As casas que souberem identificar encontrarão boas oportunidades. ”
Empreendimentos têm tempo longo de maturação e, nesse período, ciclos econômicos podem mudar”
— Cristian Lara
As formas de atuação são muitas. Além da compra de um conjunto de imóveis fruto de distrato para revenda, em obras paradas, por exemplo, a empresa compra o contencioso do projeto, traz uma nova construtora e vende as unidades. Em financiamentos imobiliários vencidos, compra carteira de hipotecas e, em obras inviabilizadas por diversos motivos, como por exemplo, saturação de determinado mercado, a Strategi assume a construção e faz alterações para permitir uma utilização diferente.
Tessler, da Jive Mauá, lembra que a lei que criou o distrato em 2018 deixou claro que o instrumento é possível, mas muitas construtoras não fazem provisionamento para isso. “O distrato gera vacância e construtora começa a sangrar, porque precisa pagar o custo de ‘carregar’ aquele ativo”, comenta. A gestora, por exemplo, compra um conjunto de unidades que os compradores devolveram à construtora com 50% de desconto e disponibiliza os demais 50% na forma de uma linha de crédito. “Quando o imóvel é alvo do distrato é o momento em que mais valoriza porque está deixando de ser uma unidade na planta e está pronto.”
O executivo explica também que o setor ganhou força na estratégia porque é preciso que o cenário seja de expansão de crédito. “Depois da pandemia tivemos retração e, agora, estamos entrando num ciclo de volta do crescimento do crédito.”
A lei do distrato estabeleceu que a construtora é obrigada a devolver 50% do que o comprador pagou. Antes da regra, os distratos chegaram ao pico histórico em 2016, a 57,9% do total de unidades comercializadas, segundo dados da Abrainc/Fipe. Esse volume veio caindo paulatinamente até os patamares atuais.
Segundo o advogado Marcelo Tapai, as ações na Justiça buscam uma devolução maior para o consumidor, partindo do princípio de que há desproporção entre as partes na regra de 50%. Isso porque o imóvel volta para a construtora para ser revendido. “Na maioria dos casos é o maior negócio da vida da pessoa. Logo depois da lei, caiu o número de pessoas querendo distratos, as pessoas achavam que não tinha jeito de conseguir de volta uma parcela mais alta, mas os advogados foram formando teses para conseguir aumentar o valor.”
Petrucci, do Secovi-SP, confirma o aumento dos distratos nos últimos três meses de 2023, mas frisa que é preciso esperar o primeiro trimestre de 2024 para se saber ao certo se é uma tendência que vai perdurar.