A pandemia fez o mercado imobiliário se reinventar. Adeptas do “olho no olho”, construtoras e imobiliárias tiraram da gaveta e colocaram em prática projetos digitais para vender (e sobreviver) nestes tempos de isolamento social dos que podem ficar em casa, seguindo o modelo de start-ups.
A saída foi digitalizar burocracias para atrair o interesse de quem está em quarentena. O uso de drones para acompanhar a obra, books virtuais e visitas ao local com lives comandadas pelo proprietário foram reforçados.
Nascida já em ambiente digital, a start-up Loft chegou no Rio há pouco mais de seis meses e atende a quase toda a Zona Sul.
Recentemente, assinou sua primeira escritura digital em solo fluminense — possível depois da decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que permitiu que cartórios realizem atos notariais on-line. A vendedora estava em Paris, e a escritura foi feita de forma on-line, no 15º Ofício de Notas do Rio.
— Hoje, 100% das nossas vendas ou compras têm componente digital. É possível fazer todo o processo de compra e venda de imóvel sem sair de casa, desde a visita virtual, a negociação e assinatura da escritura — diz Bartolomeu Cavalcanti, gerente geral da Loft.
A empresa atua em duas frentes. Ela compra imóveis, reforma e vende de acordo com a precificação de um algoritmo, que considera valores de
transações reais. Ela também lista imóveis (sem necessariamente ter comprado).
— Conseguimos vender um imóvel em 14 dias, com a jornada completa por causa da tecnologia — diz o gerente.
A construtora Mozak fez seu primeiro lançamento 100% virtual — um condomínio no Jardim Botânico com 32 unidades — e registrou alta de 30% nas vendas em relação ao início do ano. Os interessados podem visualizar as perspectivas em 3D de um apartamento decorado, imagens de drone mostrando a vista do apartamento e ferramentas digitais para assinatura do contrato.
—No passado, as pessoas usavam terno e gravata para fechar a compra de um apartamento. Hoje, o cliente assina da casa dele, vestindo o que ele quiser — explica Carolina Lindner, gerente comercial da Mozak. — Já vendíamos a distância para clientes de outros estados. No início da pandemia, com estandes fechados, ficamos em dúvida se o carioca iria se adaptar e fomos surpreendidos: 90% das vendas foram para moradores do Rio.
Avanço fora do eixo rio-sp
A tendência dos imóveis digitais já chegou a imobiliárias fora do eixo Rio-São Paulo. Uma evidência é a expansão da start-up paulistana Klikey, onde é possível encontrar corretores, fornecedores de escrituras e até mesmo gente disposta a ajudar na manutenção do imóvel.
Como a pandemia minguou negócios país afora, em março a Klikey colocou no ar um “feirão on-line” com o portfólio de 80 imobiliárias de 12 estados — de Manaus a Maringá. Para cada um dos 2 mil imóveis residenciais listados há recursos multimídia como vídeos e fotografias de cada ambiente da casa. Além de digitalizar a visita, a Klikey quer tornar on-line boa parte da papelada necessária na hora de mudar de casa.
— A pandemia atrapalhou as vendas das imobiliárias, mas trouxe um efeito benéfico de abrir a cabeça de muita gente no setor para a necessidade de inovação — diz Cláudia Lopes, fundadora da Klikey, que tem como meta passar dos atuais 20 mil imóveis listados on-line para 50 mil até dezembro.
Na Bossa Nova Sotheby’s, imobiliária com portfólio de 6 mil imóveis dede alto padrão no Rio e em São Paulo, um site com soluções on-line para visualização dos empreendimentos entrou no ar no começo do ano. Até agora 22% do estoque já estão digitalizados. A meta é colocar todo o estoque no site até dezembro.
— A pandemia acelerou os investimentos em digitalização — diz Marcello Romero, presidente da Bossa Nova Sotheby’s.
A construtora Calçada já usava o tour virtual no apartamento decorado e foi pioneira nas convenções on-line com corretores.
— O processo vai ser encurtado por causa da tecnologia. Se o cliente visitava dez apartamentos, agora vai visitar dois presencialmente, depois de ter feito esta seleção — afirma Bruno Oliveira, diretor da empresa.
É necessário investir em tecnologia e treinamento. A Cyrela, que lança mão de tour virtual, vídeo feito por drone e imagens 3D, fez uma recapacitação digital dos corretores.
— Ensinamos desde como atender a um cliente potencial, passando por marketing digital em redes sociais, treinamentos de produtos e processo de vendas. A digitalização e o conhecimento adquirido durante a pandemia vão agilizar processos. Essa experiência mais integrada ficará de legado para o mercado — avalia Aloisio Carlos, coordenador de E-business da RJZ Cyrela.
Para Claudio Hermolin, presidente da Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário (Ademi) do Rio, as empresas passaram a aproveitar melhor ferramentas que tinham pouca adesão:
— A adoção da tecnologia foi questão de sobrevivência. Todos tiveram que fazer adaptações para trabalhar.
Nas imobiliárias Brasil Brokers e Apsa, proprietários e corretores faziam lives com interessados, com visita guiada pelo celular para mostrar os detalhes do apartamento. Segundo André Moreira, diretor da Martinelli Imóveis, 90% dos interessados na compra preferem a comunicação pelo WhatsApp, usado para envio de fotos e plantas.
Escolha até da decoração
Na Tenda, construtora especializada em apartamentos do programa habitacional Minha Casa, Minha Vida, desde março é possível encaminhar pela internet boa parte da papelada para comprovação de renda na hora de pedir um financiamento imobiliário.
Com a mudança, foi possível manter as vendas mesmo com as 64 lojas fechadas por causa da pandemia. No período pré-crise, a empresa tratava até 12 mil clientes por mês. Com a solução on-line, em dois meses mais de 125 mil propostas estão sendo analisadas.
— Antes do coronavírus, os clientes, em média, faziam três visitas a lojas para levar todos os documentos. Isso demorava três semanas. Agora, estamos resolvendo tudo em 24 horas — diz Luis Martini, diretor executivo de Marketing e Tecnologia da Tenda.
Até mesmo a vistoria obrigatória em um imóvel no início e no fim do contrato passa por mudanças. Desde 2018, a start-up catarinense Hauseful recruta universitários e profissionais liberais para a tarefa. A prestação de contas do serviço é feita num portal acessado pelas partes envolvidas. Com a pandemia, o portal ganhou funções de vídeo e fotos para substituir parte das tarefas da vistoria presencial.
—Até janeiro, trabalhávamos em média com 40 imobiliárias. Agora, estamos com 300 — diz Pablo Ramirez, fundador da Hauseful.
A tendência adiante é digitalizar novas etapas do processo de mudança de endereço. Na start-up Beupse, que reproduz com animações e games os ambientes de imóveis, a pandemia ampliou o portfólio de produtos digitalizados de imobiliárias de Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo. O próximo passo é digitalizar o processo de escolha de móveis e artigos de decoração.
— Além de verem reproduções animadas e em 3D dos imóveis, queremos oferecer sugestões de móveis e artigos de decoração — diz Felipe Cunha, que negocia acordo com o Magazine Luiza para ofertar on-line os produtos do shopping virtual da varejista.