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30/11/2020

Famílias aproveitam queda nos juros para comprar casa própria mais cara

Retração nas taxas permite aquisição de um imóvel maior numa área melhor em todas as faixas sociais

A queda histórica nas taxas de juros alimenta uma espécie de ascensão imobiliária nas diferentes camadas sociais. Em outras palavras, um apartamento mais caro, que há alguns anos seria um sonho, agora cabe no mesmo orçamento, graças ao efeito da queda de juros sobre a oferta de crédito para a casa própria.

Esse ambiente gera mais confiança para que as famílias possam assumir esse tipo de financiamento, que compromete pelo menos 25% da renda por um período que pode chegar a 35 anos. No jargão adotado nos balanços financeiros das incorporadoras no terceiro trimestre, ocorre um ganho de “affordability”, ou mais acessibilidade para assumir as condições de pagamento do imóvel, em tradução livre.

Se há quatro ou cinco anos esse comprometimento parecia arriscado, o custo menor agora facilita a decisão.

Há dois anos, uma família com renda entre R$ 8.000 e R$ 9.000 que tentasse comprar um imóvel próximo a uma estação de metrô na capital paulista, por exemplo, teria mais chances de fechar o negócio recorrendo a uma linha de crédito do faixa 3 do então Minha Casa Minha Vida. O programa, revisto no governo Bolsonaro, agora se chama Casa Verde Amarela.

Com as condições de juros atuais, é possível buscar outra categoria. “Hoje, essa mesma família compra um imóvel a R$ 7.000, R$ 8.000 por m², no valor de R$ 420 mil, não mais no faixa 3, mas via crédito dedicado ao segmento de médio padrão”, diz Rodrigo Cagali, diretor financeiro e de relacionamento com investidores da Mitre Realty.

Essa mudança de faixa também amplia o acesso ao sistema financeiro imobiliário. A família, que antes poderia recorrer só aos recursos do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço), agora tem a opção do SBPE (Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo) e pode ter juros mais baixos.

Os balanços financeiros das empresas do setor têm destacado o impacto positivo da nova tendência para os negócios. A movimentação impulsionada pelo cenário de juros baixos é destaque no balanço da MRV, que se especializou no segmento de baixa renda.

“Para clientes e produtos enquadrados no grupo 3, é mais vantajoso financiar a compra do imóvel através do funding do SBPE do que pelo programa habitacional”, diz a construtora. “Isso é extremamente importante, pois permite que mais famílias financiem a compra de um imóvel sem depender ou sobrecarregar o programa CVA [Casa Verde Amarela] e o FGTS.”

Em relatório a investidores, a EZTec diz que a “melhora radical” da capacidade de financiamento permite não só o aumento de potenciais compradores “mas também de demanda por unidades maiores ou mesmo mais caras”.

O desejo por apartamentos maiores não chegou a atrapalhar os negócios de quem atua no segmento de compactos. Tatiana Muszkat, diretora institucional da You, Inc, diz que o protagonismo da casa
durante a pandemia apenas alterou o padrão de desejo do comprador. “Quem pensava em um estúdio agora quer o apartamento de um quarto”, diz.

e há quatro ou cinco anos esse comprometimento parecia arriscado, o custo menor agora facilita a decisão.

O professor João da Rocha Lima, coordenador do Núcleo de Real Estate da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, diz que o bom momento do mercado imobiliário vem da combinação da demanda orgânica —aquela gerada pela necessidade recorrente de novas habitações, pela formação de famílias, casamentos, divórcios— e demanda reprimida pelas compras que deixaram de ser feitas no anos de crise e juros altos.

“Parece que há um boom no mercado, mas o correto é dizer que há uma pressão de demanda. Ficou muita coisa reprimida desde 2016. A taxa de juros a 4%, 6% é uma situação atípica”, diz Lima.

Para ele, a prestação atual é atraente para o comprador. Com os juros futuros em alta, o patamar baixo não se sustentará por muito tempo.

A retomada dos lançamentos também é consequência da dormência vivida pelo mercado até então. “Com a pressão de demanda, a oferta, que vinha baixa, começa a se esgotar, levando as empresas a tirar terrenos do estoque”, afirma o pesquisador da Poli-USP.

Há pouco mais de um mês, o gerente de vendas Peterson Caldeira Júnior, 27, e a esposa, Sabrina Stefani e Silva, 26, se mudaram para a nova casa.

Depois de pouco mais de um ano morando com os pais dele, os dois juntaram poupanças e auxílio das famílias para comprar um apartamento de dois quartos na região da Vila Prudente, na zona leste de São Paulo.

A quarentena acentuou o desejo por independência. “Queríamos ter nosso espaço. Com a pandemia, ficando sempre em casa, você quer um lugar aconchegante, seu.”

O plano inicial era alugar um apartamento por uns três anos, para só então pensar em comprar. Mas os valores dos aluguéis contribuíram para o ajuste nos planos e nas contas.

“O valor da parcela passa um pouco do que pagaria de aluguel, com a diferença que eu teria pago quase R$ 60 mil em três anos, um dinheiro que não voltaria para mim. Agora, pelo menos, é nosso.”

A demanda aquecida também começa a ter efeito sobre os preços dos imóveis. Na Mitre, os negócios do terceiro trimestre foram fechados 4,5% acima do previsto inicialmente, em reação à procura alta.
Indicador calculado pela Abecip também aponta uma alta acumulada de 10,59% no preço médio dos imóveis residenciais no Brasil nos últimos 12 meses. Na capital paulista, o avanço é de 16,35%.

Para o diretor de vendas da Lello Imóveis, Igor Freire, os preços ainda estão estáveis e a oferta permanece ampla, favorecendo negociações de descontos.

Em outubro, a empresa registrou 40% mais vendas do que no mesmo período do ano passado, com o melhor resultado de 2020. Metade da demanda registrada pela imobiliária é por imóveis entre 60 m² e 100 m².

O segmento econômico também vai bem durante a pandemia. Nas faixas 1,5 e 2 do antigo Minha Casa Minha Vida, as taxas de juros não mudaram —elas são prefixadas e não acompanham as oscilações do mercado de crédito.

O apelo da valorização da vida doméstica, porém, surtiu efeito. A estratégia da Construtora Tenda durante o distanciamento social foi o de impulsionar a comunicação com o que a empresa chama de “cliente dormente”, chamando a atenção dele para a importância da casa.

“Muitos dos nossos clientes não têm a mínima ideia de que poderiam pagar um financiamento e até gastar menos do que estão gastando com o aluguel”, afirma o diretor comercial da Tenda, Fabricio Arrivabene.

A faixa de renda do cliente da construtora fica entre R$ 1.400 e R$ 3.000 na região Nordeste, e entre R$ 2.500 e R$ 3.000 em cidades como São Paulo. A investidores a Tenda informou que o desempenho recorde de vendas ocorreu organicamente, sem redução de preços.

FONTE: FOLHA DE S.PAULO