Por Idiana Tomazelli e Pedro Ladeira
Porto Alegre (RS), Roca Sales (RS), Cruzeiro do Sul (RS) e Muçum (RS)
Casas danificadas ou destruídas são um símbolo inconteste das enchentes que afetaram o Rio Grande do Sul entre setembro de 2023 e maio de 2024. Mas as moradias que resistiram de pé à catástrofe não passaram incólumes, mesmo após a água refluir e voltar ao seu leito habitual.
Além dos prejuízos materiais decorrentes da perda de móveis, eletrodomésticos e pertences pessoais, a tragédia provocou uma mudança no mercado imobiliário, tanto em áreas mais vulneráveis quanto em bairros nobres em diferentes municípios.
Locais que inundaram desvalorizaram de imediato, impondo uma perda patrimonial aos proprietários dos imóveis, ainda que eles não tenham ficado destruídos. Mesmo sob preços menores, placas de "vende-se" ou "aluga-se" se multiplicaram na paisagem das regiões mais afetadas.
Já em áreas mais elevadas ou longe dos rios, que ficaram protegidas da enchente, a alta repentina da demanda por um local seguro provocou uma escalada de preços, numa demonstração prática da lei da oferta e da procura.
Uma pesquisa realizada pelo Secovi-RS (Sindicato da Habitação) em Porto Alegre mostra que, entre abril e julho, cerca de 1.200 imóveis afetados pela enchente tiveram uma queda no valor de venda. O número representa cerca de 10% das 12 mil unidades disponíveis em ambos os períodos analisados.
O recuo médio foi de 8%
"Os proprietários precisaram reduzir o preço do seu bem em razão da dificuldade da venda e/ou das consequências das enchentes", diz o estudo.
Em setembro, uma nova fotografia mostra que o quadro se deteriorou ainda mais. Dos 10,9 mil imóveis que continuavam disponíveis, 1.413 apresentaram redução de preços em relação a abril (quase 13%). A perda de valor também ficou maior, alcançando 9%, em média. O resultado sugere que os proprietários estão tendo de ampliar os descontos na tentativa de obter sucesso na venda.
Os pontos comerciais, cuja demanda já havia sido abalada pela pandemia de Covid-19, foram ainda mais penalizados. No caso deles, a queda oscila entre 11% a 12% nos preços de venda.
Um dos mais antigos da capital gaúcha, o bairro Menino Deus colecionou o maior número de imóveis com redução de valores no período analisado pelo Secovi-RS. Considerado área nobre da cidade, ele começa a cerca de 500 metros da orla do Guaíba.
Em maio, suas ruas foram tomadas pelas águas que vinham não só do rio, mas também da rede de esgoto, extravasando bueiros. É lá que fica o Hospital Mãe de Deus, que precisou ser evacuado à medida que a enchente tomou conta do bairro.
Outros bairros cujos imóveis baixaram de preço foram Tristeza, Cristal e Ipanema, na zona sul; Centro Histórico e Cidade Baixa, na região central; e Sarandi, na zona norte, próximo ao aeroporto Salgado Filho —que reabriu na segunda-feira (21), quase seis meses após interromper suas atividades devido às enchentes.
"As pessoas estão tentando voltar à normalidade, independente de enchente, confiando que vão alugar de novo, que vão conseguir vender. O problema é que os estabelecimentos comerciais estão demorando muito a voltar ao que era, e o que é pior, muitos negócios fechados e que estão para alugar de novo", afirma o presidente do Secovi-RS, Moacyr Schukster.
"O prognóstico não é muito alvissareiro. Mas a gente tem que confiar na falta de memória das pessoas. São vicissitudes", avalia.
A perda de valor dos imóveis impõe um desafio às famílias. Embora não haja dados compilados para retratar a ocorrência de cada tipo de situação, há efeitos imediatos e secundários. O primeiro deles é a perda patrimonial, uma forma de empobrecimento em relação ao que os proprietários tinham antes.
Quando isso ocorre, há, por hipótese, o risco de unidades financiadas valerem momentaneamente menos do que a dívida total contratada junto ao banco.
Além disso, numa situação de queda dos valores, famílias e empresas dispõem de uma garantia menor para oferecer na contratação de um empréstimo, por exemplo. Isso pode dificultar o acesso a crédito.
Mais pobres, graças à perda de valor de seus ativos, essas famílias também se deparam com preços mais altos na hora de buscar um imóvel em área segura.
Dados do índice FipeZAP mostram que os preços de venda residencial em Porto Alegre acumulam uma alta de 4,32% no ano até setembro e de 6,33% em 12 meses. A aceleração ganhou força a partir de maio, mês das enchentes.
O aumento foi puxado por bairros como Rio Branco, Bela Vista, Mont'Serrat e Petrópolis, todos considerados áreas nobres da cidade, mas também afastados do Guaíba —tanto que não alagaram.
Nos aluguéis, o aumento foi ainda mais expressivo, de 25,5% em 12 meses, acima da média de 13,75% observada nas 36 cidades monitoradas no Brasil.
"O mercado de locação reage mais rápido. Porto Alegre é a terceira cidade com a maior valorização. A gente vê, sim, esse impacto no mercado de locação, e mais recentemente a gente tem visto também no mercado de compra e venda de imóveis", afirma o coordenador do índice FipeZAP, Alison Oliveira. Em sua avaliação, a injeção de recursos na reconstrução das cidades contribuiu para aquecer a economia e influenciar a dinâmica do mercado.
Embora os dados sejam mais escassos no interior do estado, a percepção geral de moradores, empresários e visitantes é de que a dinâmica do mercado imobiliário nesses locais segue o mesmo padrão.
Em Roca Sales, município do Vale do Taquari situado a 143 km de Porto Alegre, adentrar na principal rua da cidade significa perder a conta de quantos pontos comerciais e residenciais estão vazios, encobertos por anúncios de aluguel ou venda.
A funcionária pública Valquíria Regina Bazanella, 56, mora em uma rua transversal à avenida. Sua casa fica em um amplo terreno onde havia, antes da enchente, três habitações. Restaram duas, já que a terceira foi arrastada pela água.
"Aqui tinha proposta de mais de R$ 1 milhão, queriam comprar antes da enchente. Nós não cedemos porque a gente não queria sair. Agora não vale nada", diz ela, aos risos, numa tentativa de manter o bom humor diante das adversidades.
Ela e o marido perderam tudo duas vezes. Diante da destruição do patrimônio construído ao longo de décadas e sem capital suficiente para mudar para outro local, eles preparavam, no início de setembro, o retorno para a casa —ainda destelhada e com vestígios de lama por todos os lados.
"Um terreno que era R$ 100 mil agora está R$ 200 mil. Dobrou [de preço] depois da enchente, todo mundo está procurando", diz Bazanella.
O casal não está só na jornada de volta para casa por falta de opção. Em Cruzeiro do Sul, a 123 km de Porto Alegre, a aposentada Leonise de Oliveira, 67, destina R$ 500 mensais de sua aposentadoria para alugar uma garagem improvisada de moradia para ela e seu companheiro, Aldo Neves, 50.
"A gente não tinha pra onde ir, estávamos praticamente na rua. Se fôssemos alugar num outro lugar, ia ter que pagar de R$ 1.000 para cima de aluguel. Isso nós não íamos poder fazer nunca", afirma.
Há alguns anos, Neves vendeu um terreno por R$ 40 mil. Usou todo o dinheiro para fazer melhorias na moradia do casal, situada no bairro Passo de Estrela, completamente arrasado pela enchente.
A casa de quatro cômodos, um banheiro, garagem ampla e área externa com piscina foi desfigurada, sem telhado e suja de barro por todos os lados.
Com o pagamento do aluguel pesando no bolso e sem dinheiro para comprar terreno e construir em outro lugar, o casal pretende voltar ao bairro destruído, reformar o telhado e limpar o que restou. "A nossa casa está dentro da área de arraste, mas nós não temos opção", diz Neves.
(Matéria publicada em 29/10/2024)