O martelo ainda não foi batido. Mas oito anos após flertarem com essa possibilidade, as incorporadoras imobiliárias brasileiras estão bem próximas de ter que mudar, a contragosto, a forma de reconhecer a receita da venda de imóveis na planta para clientes de classe média e classe média alta, que deixaria de ser feita ao longo da obra (em um método conhecido como POC) para o momento da entrega das chaves.
A decisão deve vir de Londres, numa reunião do comitê de interpretações do Iasb (órgão que edita as normas contábeis IFRS) marcada para a próxima terça-feira. Mas a tendência maior é de mudança, já que o parecer da área técnica desse comitê, diante das análises realizadas - e com o tratamento dos distratos tendo peso relevante na avaliação -, foi de que "a entidade deve reconhecer a receita em um único momento no tempo".
Embora seja razoável supor que o efeito seria muito maior se o mercado imobiliário estivesse crescendo, como em 2010, a mudança, se confirmada, deve provocar um efeito nada desprezível nos saldos patrimoniais e de resultado divulgados por essas companhias. Segundo um analista da área, os investidores não estão com essa questão no radar neste momento.
A possível novidade, cujo efeito prático é adiar o registro da receita nos balanços, não vale para os projetos do Minha Casa Minha Vida e outros de baixa renda financiados pela Caixa Econômica Federal.
Para Renato Ventura, vice-presidente da Abrainc (Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias), o método POC (do inglês "percentage of completion") traz uma visão mais completa da situação financeira dos negócios. "O reconhecimento na chave é uma fotografia do passado, que prejudica a visibilidade efetiva do andamento da empresa", afirma ele, para quem o caso dos distratos poderia ser resolvido provisões.
Ele frisa ainda que é "urgente uma resposta" sobre essa questão dado que, em caso de mudança, as empresas precisam se adaptar para divulgar os novos números no primeiro trimestre de 2018, com 2017 comparativo.
A pedido do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), órgão que traduz e adapta as normas contábeis internacional do IFRS aqui no país, a área técnica do Ifric analisou os contratos de venda de imóveis na planta no Brasil e também sua aplicação na prática - ou seja, como a Justiça os interpreta.
A conclusão foi de que e nenhuma das condições previstas no pronunciamento IFRS 15 (ou CPC 47, que entra em vigor em 2018) para reconhecimento da receita ao longo do tempo é plenamente atendida. O comitê do Ifric, contudo, ainda pode manifestar entendimento diverso na reunião do dia 12.
Essa polêmica surgiu no Brasil quando da adoção do padrão contábil IFRS completo em 2010. Depois de muita discussão, com as empresas preferindo a manter o POC (que era a prática local e mostrava balanços mais robustos) e as auditorias entendendo que a norma internacional (ainda debaixo do pronunciamento CPC 30) exigiria o reconhecimento da receita apenas nas chaves, o CPC decidiu, por maioria (vencidos os auditores), editar a Orientação CPC 04, ratificada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) na época.
A OCPC 04 teve o efeito prático de dar segurança jurídica para as empresas usarem o método POC. Mas por causa dessa norma local, os pareceres de auditoria sobre os balanços das incorporadoras brasileiras vêm com um parágrafo de ênfase, que fazem uma espécie de alerta de que essa seria uma peculiaridade do IFRS adotado no Brasil - como se fosse uma exceção à norma internacional, com o que a CVM e muitos especialistas não concordam.
Juridicamente, nem o CPC nem a CVM nem o Conselho Federal de Contabilidade (CFC) são obrigados a seguir o Ifric.
Mas para Alexsandro Broedel, professor da FEA-USP e membro do Asaf, um órgão de aconselhamento do Iasb, uma decisão formal do Ifric sobre essa questão tem efeito vinculante para a manutenção do IFRS completo no Brasil. "Se a empresa faz o balanço em desacordo com o que diz o Ifric, os auditores poderão dizer no parecer que não é IFRS".
Broedel diz que há bons argumentos dos dois lados da discussão, mas acredita que a realidade, diante do grande volume de distratos, acabou levando à conclusão de que a obrigação de desempenho da incorporadora só é concluída na entrega das chaves.
A CVM foi procurada, mas não se manifestou sobre o caso.