A economia brasileira operou por décadas com indexadores de inflação, que ao mesmo tempo que protegiam os produtores e prestadores de serviços da corrosão dos aumentos de preços também retroalimentavam a inflação. Um dos fósseis desse período — que parece ter ficado de vez para trás após a última grande crise econômica com a alta descontrolada de preços deixando de assustar o consumidor — é o uso comum do IGP-M (Índice Geral de Preços – Mercado) para reajustar contratos de aluguéis residenciais. O índice elaborado pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV-Ibre) ficou até popularmente conhecido como a inflação do aluguel.
A crise atual pode, no entanto, acabar com isso, por conta de suas peculiaridades. Ao pressionar os custos de alguns setores ao mesmo tempo que o desaquecimento de outros causava até deflação, como aconteceu em serviços, o IGP-M disparou para 13,02% em doze meses acumulados até agosto, enquanto o IPCA ficou em 2,44% no mesmo período. Ou seja, apenas a alta do mês de agosto do IGP-M, de 2,74%, ficou bastante acima do IPCA em um ano completo.
Nesse cenário, o inquilino que chegou recentemente ao período de sofrer reajuste no preço de seu aluguel, se viu forçado a pagar mais de 10% de acréscimo na conta, mesmo num momento de crise econômica e de baixa inflação. E, apesar de que essa indexação estar prevista na imensa maioria dos contratos, quem buscou negociar melhores termos têm conseguido aumentos bem menores. O próprio IGP-M traz indicações de que isso está ocorrendo. Um dos preços que compõem o índice é o IPC-M, o índice de preços do consumidor. E, dentro dele, há a rubrica aluguel residencial, que sofreu alta acumulada de apenas 3,09% em doze meses.
Resumindo, apesar de os contratos de alugueis estarem exigindo uma alta de 13,02%, o consumidor está pagando, na prática, apenas 3,09% mais, nos últimos meses. “O IGP-M vem saindo um pouco do radar como um superindexador, e deve ser usado de forma mais cautelosa”, defende o economista André Braz, coordenador do Índice de Preços ao Consumidor da FGV, a própria instituição responsável pelo IGP-M. “Quando o proprietário chega e quer valer o índice em contrato, ele se depara com a resistência do mercado, que está vivendo um ciclo de queda da atividade econômica. As condições da economia ditam muito se vai valer o que está no contrato. Para o proprietário, vale mais a pena manter o imóvel alugado do que tentar um reajuste mais alto e perder o morador.”
IGP-M X IPCA
Por trás de toda essa tendência, está um forte descolamento entre os índices de inflação ao consumidor e os mais voltados ao produtor. Para entender esse fenômeno, é importante entender a formação do o IGP-M. O índice é formado por três outros índices com pesos diferente: o IPA (índice de preços do atacado) representa 60%, o IPC (índice de preços do consumidor), 30%, e o INCC (índice nacional de custo da construção) fica com 10%. Alguns especialistas defendem que esse último, por ser mais relacionado ao mercado imobiliário, é o que deveria servir para indexar contratos de aluguéis.
Segundo André Braz, os preços administrados, como reajustes de medicamentos, planos de saúde e energia elétrica, tiveram aumentos suspensos neste ano e impactam mais o índice ao consumidor. Para o consumidor final, houve muitas pressões deflacionárias, como a queda do petróleo no início da pandemia, seguida pelo isolamento social, que causou deflação em abril e maio. Apenas o item alimentação pressionou por alta. Cerca de 70% da economia está atrelada ao setor de serviços — considerando também o varejo –, exatamente o mais afetado pelo isolamento social. “Não há precedentes de uma crise que afeta muito mais os serviços e preserva a indústria e o comércio”, afirma Carlos Kawall, diretor do Asa Investments e ex-secretário do Tesouro Nacional. “Normalmente, é o contrário. A crise de 2015 e 2016 começou afetando a indústria e depois chegou aos serviços, quando as pessoas começaram a consumir menos.”
Já o IGP-M é mais sensível ao aumento do dólar, que subiu fortemente em 2020. O impacto do câmbio não é direto, mas o IPA capta os preços das commodities, que são cotadas em dólar. Dessa forma, as altas do minério de ferro — que subiu mais de 66% em 12 meses — afetam o índice. Quem está sentindo esse efeito são as fabricantes de produtos que utilizam folhas de aço, como os bens duráveis. Fabricantes de micro-ondas, computadores e automóveis enfrentam o dilema de perder margem de lucro ou repassar o aumento de custos ao cliente num período de crise e de desemprego em alta. “A diferença entre os índices deve permanecer por conta do câmbio que se sustenta acima dos 5 reais para 1 dólar”, diz Braz.
Os defensores do uso do IGP-M para os contratos de aluguel costumavam lembrar que, mesmo que em alguns momentos um índice se descole do outro, a tendência em médio prazo é que eles se encontrem. Mas a expectativa é de que isso não aconteça tão cedo desta vez. “Vai precisar de uns três ou quatro anos para vermos uma convergência mais forte do câmbio. Não está no horizonte”, diz Braz. “Em outros países, o IPA teve queda junto com os preços ao consumidor. No México houve um fenômeno parecido com o Brasil, mas não na mesma intensidade.” Pode ser o suficiente para o IGP-M perder a alcunha de índice do aluguel