Notícias

25/04/2022

Justiça autoriza saque do FGTS a famílias de crianças autistas

Transtorno não está previsto na lei do Fundo de Garantia, mas tribunais têm decidido a favor da liberação

Famílias que têm dependentes com TEA (Transtorno do Espectro Autista) têm conseguido na Justiça o direito de sacar o saldo do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço). O transtorno não está entre as hipóteses previstas na lei que autorizam o trabalhador a usar o fundo, mas os tribunais entendem que é possível retirar o dinheiro para ajudar nas despesas para cobrir o acompanhamento profissional.

No início de março, o TRF-3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região), que atende São Paulo e Mato Grosso do Sul, confirmou uma sentença neste sentido. A decisão foi unânime e determinou que a Caixa Econômica Federal, gestora do FGTS, liberasse o saque para o pai de um menino autista.

Quando entrou com a ação, em 2019, o trabalhador tinha R$ 119 mil no FGTS, somando depósitos de quatro empregos desde 2011. Ele alegou que precisava do dinheiro para pagar um tratamento multidisciplinar para o filho, diagnosticado com TEA quando tinha dois anos.

Como de praxe nestes casos, o pedido de saque do FGTS foi negado pela Caixa. Tanto nos requerimentos administrativos quanto nos processos judiciais, o banco alega que não pode liberar a movimentação do saldo fora das hipóteses listadas na legislação federal.

Embora o dinheiro pertença ao trabalhador, a lei permite o acesso ao fundo em casos específicos. Além de demissão sem justa causa e compra da casa própria, há situações relacionadas à saúde do trabalhador ou do dependente. Entre elas estão os portadores de HIV, pessoas com câncer ou com doença grave em estágio terminal.

A rigor, o autismo não se enquadra em nenhum caso.

Na ação judicial que chegou ao TRF-3, o trabalhador trouxe laudos médicos que comprovam o diagnóstico de TEA e a necessidade de acompanhamento especializado para a criança.

Em primeira e segunda instâncias, a Justiça Federal entendeu que o trabalhador tinha o direito de sacar o FGTS, citando outros precedentes do próprio TRF-3 relacionados a casos de autismo. Cabe recurso.

A defensora pública federal Luísa Ayumi afirma que o ideal seria uma mudança na lei ou uma decisão judicial em ação coletiva que determinasse a autorização do uso do FGTS a todas as famílias com dependente autista. Enquanto isso não acontece, a Caixa é obrigada a negar os pedidos, com base na interpretação literal da legislação.

"A Caixa consegue liberar administrativamente apenas nas hipóteses previstas na lei. Em outros casos, não previstos expressamente, a solução é entrar com ação judicial, para buscar uma interpretação de acordo com os fins sociais do programa", diz Ayumi.

O entendimento do TRF-3 não está isolado. Todos os cinco tribunais regionais federais têm decisões autorizando o saque do FGTS para famílias com dependente autista. O STJ (Superior Tribunal de Justiça), responsável por uniformizar a jurisprudência federal, não tem julgamento específico sobre casos envolvendo FGTS para dependente autista, mas já decidiu que a lista de doenças trazida na lei é apenas exemplificativa —e, portanto, admite situações não descritas.

O coordenador de sistema Ricardo Rockenbach Nascimento, 40, entrou com uma ação na Justiça Federal do Paraná em maio de 2020 para pedir o acesso a R$ 99 mil que ele tinha no FGTS à época. Ele é pai de Felipe, que hoje tem 4 anos, diagnosticado com TEA aos 2.

Por meio de laudo médico, Ricardo comprovou que o filho tem autismo de intensidade nível dois (existem três níveis, que avançam conforme a gravidade dos sintomas) e precisa de tratamento contínuo por tempo indeterminado. Mais tarde, Maria Clara, gêmea de Felipe, receberia diagnóstico de autismo nível 1.

O processo demorou oito meses até que a a juíza condenasse a Caixa, mas o dinheiro só foi liberado após o tribunal confirmar a sentença, três meses depois.

Carina Nascimento, 39, mãe dos gêmeos, diz que só o tratamento de Felipe inclui sessões de psicoterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional que custam, ao todo, R$ 1.200 por semana. Somam-se outros gastos, como brinquedos pedagógicos especializados, necessários para estimular as crianças em casa, e medicamentos.

"Os pais de autistas não deveriam ter que ficar explicando por que precisam [do FGTS]. É um dinheiro nosso de direito e que nos ajudou muito", diz Carina. O casal enfrenta agora outra disputa judicial, desta vez contra o plano de saúde, para cobrar o reembolso das despesas com o tratamento dos gêmeos em Guaratuba (PR), onde moram.

COMO ENTRAR COM AÇÃO PARA PEDIR A LIBERAÇÃO DO FGTS

Ações para pedir a liberação do saque do Fundo de Garantia são de competência da Justiça Federal.

A DPU (Defensora Pública da União) atende gratuitamente famílias com renda mensal de até R$ 2.000 ou que comprovem a incapacidade de pagar um advogado. Confira neste link os pontos de atendimento e contatos da DPU.

Se o valor total pedido na ação for de até 60 salários mínimos (R$ 72.720), é possível entrar com o pedido diretamente no Juizado Especial Federal, sem a necessidade de advogado. Acima desse valor, é preciso entrar em uma vara da Justiça Federal, sempre com advogado.

Priscila Zangiácomo, especialista em relações trabalhistas e sindicais, diz que não é recomendado fazer o pedido judicial sem a orientação de advogado, devido a particularidade e complexidade do procedimento.

Segundo a advogada, são necessários os seguintes documentos para entrar com a ação:

Documento de identidade (RG ou CNH, incluindo CPF)

Carteira de trabalho (pode ser a versão digital)

Comprovante de residência atualizado (ideal que seja de, no máximo, três meses)

Extrato do FGTS (que pode ser obtido no site da Caixa ou no aplicativo FGTS)

Cópia dos exames médicos, laudos ou dados clínicos que tenham sido informados no formulário "Relatório Médico de Doenças Graves para Solicitação de Saque do FGTS"

Caso o pedido tenha como fundamento a doença ou transtorno de um dependente, será necessário um comprovante da relação de dependência (como certidão de nascimento ou de adoção).

 

Matéria publicada em 24/04/2022

FONTE: FOLHA DE S.PAULO