Notícias

07/11/2023

Marco Legal das Garantias. A mora do devedor impõe a consolidação da propriedade?

Por Mauro Antônio Rocha 

Na alienação fiduciária, caracterizada a mora do devedor, o fiduciário deve requerer de imediato a consolidação da propriedade e, se preciso, a venda do imóvel em leilão, respeitando os prazos legais. 

1. Em extenso e excelente artigo publicado no boletim Migalhas nº 5.7191 o Prof. Carlos E. Elias de Oliveira apresentou detalhada análise da lei 14.711, de 30 de outubro de 2023, cognominada Marco Legal das Garantias - cuja leitura lenta, desordenada e simultânea com outros textos sobre a matéria animaram os mornos dias pós feriado - minha atenção foi apanhada por duas questões aparentemente desconectadas do tema por que, a rigor, não se encontram diretamente reguladas pela norma legal analisada.


Nelas, o autor analisa causas e consequências do voluntário retardo do credor fiduciário na instauração do procedimento de execução extrajudicial da alienação fiduciária de imóvel e trata da possibilidade de fazê-lo o próprio devedor ou fiduciante, inaugurando o procedimento de excussão como instrumento de defesa.
 

2. O autor se refere à ilegalidade de o fiduciário retardar injustificadamente as providências necessárias para iniciar os atos destinados à execução da dívida fiduciária, com a intenção de auferir benesses financeiras decorrentes dos elevados encargos moratórios e legais incidentes sobre a dívida consolidada, com a consequente redução do valor a restituir ao fiduciante após a quitação total da dívida ou elevação indevida da dívida remanescente e exigível. 

Dispõe o autor que esses encargos vantajosos podem incentivar o credor a postergar o procedimento executivo, adotando "postura de má-fé (de espertalhão) censurada pelo nosso ordenamento por meio do 'duty to mitigate the loss', o dever de mitigar as próprias perdas, que "estabelece que o credor não pode adotar conduta oportunista que estimule o aumento da dívida com o objetivo de obter proveito maior." 

Nesse contexto, sustenta que o § 5º A - inserido pela lei comentada ao art. 27 da lei 9.514/97 com o objetivo de imputar ao fiduciante o risco do negative equity - para além de responsabilizar o devedor e o fiduciante pelo pagamento do saldo da dívida eventualmente remanescente após a alienação do bem imóvel em leilão público - pode gerar situação extremamente sensível ao fiduciante, uma vez que, "quanto mais tempo o credor demorar a cobrar a dívida, maior será o valor da dívida por conta da incidência dos encargos moratórios", ressalvando a não aplicação da regra aos casos de financiamento para aquisição ou construção de imóvel residencial "perante instituições financeiras". 

Grifei "perante instituições financeiras" pois, a meu ver, foi atraída pela utilização, no 'caput" do art. 26-A, do substantivo masculino 'financiamento' que designa operação de crédito própria de entidades com funcionamento e atividades autorizadas pelo Banco Central do Brasil.  Ocorre que, pelo princípio da isonomia e considerada a quantidade de imprecisões conceituais e redacionais encontráveis no texto legal, parece-me que a exceção apontada deve ser aplicada também às operações de parcelamento do preço (não-financeiras) praticadas por construtoras e incorporadoras, o que, por certo, abrirá um novo franco para a judicialização dos contratos de garantia fiduciária. 

 2.1 O anunciado § 5º A, incluído no art. 27 da lei 9.514/97, foi trabalhado pelo legislador para, em conjunto com outros dispositivos, estender às operações financeiras e comerciais ordinárias realizadas com garantia fiduciária a responsabilidade dos fiduciantes e prestadores de garantia pessoal pelo pagamento do saldo devedor remanescente, que fora introduzida inicialmente pelo burlesco art. 9º da lei 13.476/17 que, ao cuidar das garantias constituídas no instrumento de abertura de limite de crédito, dispôs sobre dita obrigação sem que se tivesse dado conta de que, no procedimento então vigente para a venda do imóvel em leilão - exclusivamente pelo valor revisado do bem em primeiro leilão ou pelo valor total da dívida no segundo - não haveria hipótese possível de aplicação da imposição pretendida, situação agora corrigida pela redução do referencial mínimo para venda do bem imóvel à metade do "valor de avaliação" (expressão inserta no § 2º do art. 27 da lei que, pela inexistência de avaliação ou reavaliação do bem levado à leilão, contém explosiva potência de judicialização). 

Assim, ao mesmo tempo em que a lei aperta o devedor e o fiduciante reduzindo as possibilidades de 'saída honrosa' para a situação de inadimplência enfrentada, mostra toda a sua magnanimidade para com o fiduciário, ao estabelecer prazos não peremptórios, incompatíveis com a presteza do procedimento adotado e destituídos de penas pelo não cumprimento. 

Não por acaso, a lei de regência (a) não penaliza o fiduciário pela administração descuidada do contrato que afeta a indicação dos meios de localização rápida e eficiente dos intimados; (b) não impõe prazo ao fiduciário para o início do procedimento de excussão após evidenciado o inadimplemento; (c) não determina prazo para o atendimento da exigência legal de apresentação dos comprovantes de pagamento dos tributos para a consolidação da propriedade; (d) não estabelece multa para o descumprimento do prazo de realização do público leilão após a consolidação da propriedade, que, ademais, foi agora absurdamente alargado para sessenta dias (art. 27, caput, com redação). 

Esses são apenas alguns exemplos de situações admitidas pela lei, favoráveis e suficientes para proporcionar ao fiduciário a postergação de medidas e proporcionam a acumulação de parcelas vencidas, acréscimos moratórios e penalizações de toda ordem, para além da imputação de taxa de ocupação ao fiduciante e de sua própria desobrigação quanto às despesas condominiais e tributárias incidentes, sem correr o risco de responder por violação voluntária do 'duty to mitigate'. 

FONTE: MIGALHAS