Medidas recentes anunciadas pelo governo mostram que no front habitacional não amadurecemos, ao contrário, estamos regredindo.
A faixa I do Minha Casa Minha Vida, a despeito dos sérios problemas que acumula, é mantida, ainda que com meta mais acanhada.
Infraestrutura: produção de bairros-dormitórios guetificados, com falhas na infraestrutura básica e carências na urbana em muitos conjuntos (IPPUR/UFRJ, 2015).
Qualidade: 48,9% das unidades produzidas entre 2011 e 2014 apresentam problemas construtivos; 10% têm falhas graves que comprometem as condições de uso e segurança ("O Estado de S. Paulo, 6 de fevereiro).
Distribuição das unidades: baixa aderência em relação ao déficit habitacional municipal (Ipea, 2015).
Inadimplência: no RJ, SP, BH, Salvador, Fortaleza e Baixada Santista há 74 empreendimentos com inadimplência acima de 40%, em alguns casos ultrapassa 90%. A média dessas regiões é de 28% (dados até dezembro/2015).
Por si, a questão da inadimplência já demanda a compreensão de suas causas e o redesenho do Programa. Há evidências de que os custos com a taxa de condomínio (modelo predominante) elevam as despesas com habitação para acima de 30% nos primeiros decis de renda, dificultando o pagamento das prestações (Ipea, 2015). Há também o aumento de outros custos, notadamente o de transportes, devido à localização periférica e precariedade da infraestrutura urbana, reduzindo a renda disponível para pagar pela habitação.
Por fim, a definição do valor das prestações ignora quesitos importantes - renda per capita, vulnerabilidade social e custo de vida da região - produzindo ineficiências com a cobrança de prestações aquém do que a família pode realmente pagar, desperdiçando escassos recursos públicos, e injustiças pela cobrança de valores que outras famílias, de fato, não dispõem.
Mas não ficamos por aí. O governo acaba de ampliar o limite de renda familiar para empréstimos do MCMV de R$ 6,5 mil para R$ 9 mil, promovendo um retrocesso da tão duramente conquistada focalização do crédito lastreado pelo FGTS em rendas mais baixas. Vale lembrar que para atender rendas acima dos R$ 6,5 mil temos os recursos da poupança.
É conhecido o desinteresse dos bancos privados pelo financiamento habitacional, já que há crédito mais rentável a conceder com os recursos da poupança, captados a menor custo, bem como seu pleito pela desregulamentação da exigibilidade (SBPE/SFH). Neste momento, a elevação da inadimplência contribui para justificar a omissão do SBPE e de seus agentes financeiros, notadamente os privados já que os públicos estão sobreaplicados.
Mas imputar a tarefa de expandir o crédito habitacional exclusivamente ao FGTS e bancos públicos, por meio da elevação do limite de renda no MCMV é um tiro no pé, ainda que possa promover algum alívio imediato às incorporadoras. Vai de encontro ao desenvolvimento das fontes de funding no âmbito do SFI, incluso as LIGs, em processo de regulamentação.
Estudo recém elaborado pelo Merrill Lynch (31/01/17), pouco antes da efetivação do novo limite de renda no MCMV em R$ 9 mil, já alertava que dentre todas as mudanças previstas para o FGTS, esta era não apenas "desnecessária" como seu impacto, em adição às medidas já efetivadas, comprometeria o crédito para rendas mais baixas: "O FGTS é estruturalmente importante para a habitação social e as autoridades devem levar em consideração o risco do Fundo abocanhar mais do que pode mastigar". Para mitigar o impacto, caso a medida fosse realmente adotada, recomendava limitar o financiamento para rendas acima de R$ 6,5 mil a, no máximo, 25 mil unidades. Na medida já anunciada o governo estipulou em 400 mil unidades a meta para as faixas II e III do Programa (rendas entre R$ 4 e R$ 9 mil)!
A elevação do teto de preço de imóvel financiado pelo SBPE/SFH para R$ 1,5 milhão é outra flagrante contradição já que a captação dos bancos via Letras de Crédito Imobiliário (LCIs) segue crescendo, inclusive às custas da redução dos estoques do SBPE. Este alargamento do limite, mesmo que não extensivo ao saque de recursos do FGTS, barateia (subsidia) o crédito para a compra de imóveis de maior valor por famílias de alta renda (não há limite de renda no SBPE), reduz a exigibilidade para imóveis abaixo de R$ 950 mil, flexibilizando, mais uma vez, o cumprimento do direcionamento pelos bancos privados, e aumenta a pressão sobre o FGTS e os bancos públicos para atenderem o restante da demanda. É mais um tiro no pé.
Por fim, o déficit habitacional não pode servir de justificativa para as mudanças, pois é histórico e absolutamente concentrado nas faixas de renda abaixo de 3 salários mínimos: 84% do déficit habitacional urbano (FJP, 2014). Ademais, o déficit habitacional é crescentemente caracterizado não por famílias que não têm casa, mas pelo ônus excessivo com o aluguel (famílias com renda de até 3 salários mínimos que gastam mais de 30% apenas com o aluguel): 48% do déficit total. As metas estabelecidas para o PMCMV - 400 mil unidades para rendas acima de R$ 4 mil e 210 mil unidades para rendas inferiores - destoam completamente da distribuição do déficit.
As medidas recém adotadas tendem a fazer migrar os recursos destinados ao crédito, especialmente os subsidiados do SFH (SBPE e FGTS), para as rendas mais altas e imóveis de maior valor, e por consequência, minguar o crédito e a produção para rendas moderadas e baixas.
Claro que a construção civil é chave e que precisamos gerar emprego, mas acredito que não saímos da crise "vendendo o jantar para comprar o almoço", mesmo que a visão do almoço possa nos alegrar momentaneamente. Ainda mais quando o almoço sequer será compartilhado por todos. Precisamos encontrar saídas mais sustentáveis e inclusivas, que embora possam não dar tanto ânimo imediato, pavimentarão um futuro mais promissor para o país.
*Claudia Magalhães Eloy é doutora em urbanismo, consultora em política e financiamento habitacional. Escreve a coluna sobre a América Latina para o Housing Finance International Journal. claudiamagalhaes@usp.br.