Howard Davies*
Logo depois de ter ficado clara a magnitude da crise financeira de 2008, teve início uma acalorada discussão sobre se os bancos centrais e órgãos reguladores podiam - e deviam - ter feito mais para combatê-la. O ponto de vista tradicional, aliás compartilhado pelo ex-presidente do Federal Reserve dos EUA, Alan Greenspan, é o de que qualquer tentativa de furar bolhas financeiras antecipadamente está condenada ao fracasso. O máximo que os bancos centrais podem fazer é pôr ordem na bagunça.
De fato, furar bolhas pode deter desnecessariamente o crescimento - e a um alto custo social. Mas existe um contra-argumento. Economistas do Banco de Compensações Internacionais (BIS) sustentaram que os custos da crise são tão grandes e o processo de arrumação, tão longo, que agora deveríamos com certeza buscar maneiras de agir preventivamente quando voltarmos a ver uma perigosa alta da liquidez e do crédito.
Decorre daí a discussão acirrada (embora surda e cortês) entre os dois lados presentes na recente reunião do Fundo Monetário Internacional realizada em Lima, no Peru. Aos dotados de inclinações literárias, ela lembrou "As Viagens de Gulliver", de Jonathan Swift. Gulliver se vê envolvido em uma guerra entre duas tribos: uma delas acredita que um ovo cozido deveria ser sempre aberto na extremidade estreita, enquanto a outra defende ardorosamente que a extremidade maior, redonda, comporta melhor uma colher.
Mesmo que nem sempre tomem as medidas corretas, cabe aos presidentes de bancos centrais aprender com a maior crise financeira dos últimos 80 anos, em vez de continuar insistindo, indiferentes, em enfoques de política pública que fracassaram de forma tão estrondosa.
Deve-se dizer, a bem da verdade, que a discussão avançou um pouco desde 2008. E, o que é mais importante, a regulação macroprudencial foi acrescentada ao kit de ferramentas dos formuladores de políticas públicas: em poucas palavras, faz sentido fazer com que as exigências de capitalização dos bancos variem de acordo com o ciclo financeiro. Em épocas de expansão rápida do crédito, pode ser adequado aumentar as exigências de capitalização dos bancos como uma forma de se proteger do risco, nessas circunstâncias maior, de uma contração subsequente.
Esse aumento seria superior ao que a supervisão microprudencial - a avaliação dos riscos a instituições individuais - poderia ditar. É por isso que as normas da Basileia permitem que se exija que os bancos mantenham o assim chamado colchão anticíclico de capital adicional.
Mas, se a ideia do colchão anticíclico é agora aceita de forma generalizada, o que dizer da "alternativa nuclear" para furar uma bolha: é justificável aumentar as taxas de juros em resposta a um boom de crédito, embora a taxa de inflação possa ainda estar abaixo da meta? E será que os bancos centrais deveriam receber um objetivo específico de estabilidade financeira, separado da meta de inflação?
Jaime Caruana, o diretor-geral do BIS e ex-presidente do Banco da Espanha, o BC espanhol, responde "sim" a ambas as perguntas. Em Lima, ele argumentou que o assim chamado "princípio da separação", pelo qual a política monetária e a estabilidade financeira são abordadas de forma diferente e atribuídas a órgãos distintos, não faz mais sentido.
Os dois conjuntos de políticas, é claro, estão fadados a interagir; mas Caruana argumenta que é equivocado dizer que sabemos muito pouco sobre instabilidade financeira para sermos capazes de agir de maneira preventiva. Sabemos tanto sobre bolhas quanto sabemos sobre inflação, alega Caruana, e a necessidade dos bancos centrais de mudar as taxas de juros por motivos outros que não o controle de curto prazo das tendências dos preços ao consumidor deveria ser explicitamente reconhecida.
No encontro de Lima, a réplica tradicionalista veio de Benoît Coeuré, do Banco Central Europeu. Um banco central, argumentou ele, precisa de uma atribuição muito simples que lhe permita explicar suas medidas claramente, e tem de ser considerado responsável por elas. Deve-se, portanto, deixar os bancos permanecerem fiéis ao princípio da separação, "que simplifica nossa vida. Não queremos um conjunto complicado de objetivos".
Para Coeuré, tentar manter a estabilidade financeira está no compartimento das tarefas "difíceis demais". Mesmo o mérito da regulação macroprudencial é dúbio: os supervisores deveriam se limitar a supervisionar as diferentes instituições, deixando a política de nível macro para os adultos.
Nemat Shafik, a vice-presidente do Bank of England, o BC britânico, tentou se posicionar em meio a essas posturas opostas. Propôs recorrer a três linhas de defesa contra a instabilidade financeira.
A regulação microprudencial, disse, é a primeira linha de defesa: se todos os bancos emprestarem com prudência, a probabilidade de excessos coletivos será menor. Mas a segunda linha de defesa é a manipulação macroprudencial das exigências de capitalização, a ser aplicada de forma generalizada ou a segmentos determinados, como o crédito imobiliário.
E se, tudo o mais não conseguir garantir estabilidade financeira, os bancos centrais poderiam mudar as taxas de juros. Pelo fato de a legislação britânica atribuir a regulação da capitalização e a política de taxas de juros a duas comissões distintas - com membros diferentes - no âmbito do Banco da Inglaterra, a estratégia de Shafik exigiria algumas manobras políticas e burocráticas inteligentes.
Muita pesquisa, análise e discussão foram dedicadas às causas da crise de 2008 e suas consequências; portanto, parece estranho que altos dirigentes de bancos centrais ainda estejam tão divididos sobre a questão central da estabilidade financeira. Aqueles dias passados em conclave na Basileia, dando cabo da lendária adega de vinhos do BIS, aparentemente não levaram a qualquer consenso.
Minha opinião é a de que Caruana tinha o melhor dos argumentos, e Coeuré, o pior. Aferrar-se a um objetivo simples em nome de uma vida tranquila, mesmo que sabidamente imperfeita, é, no melhor dos casos, uma postura deselegante. Precisamos que nossos presidentes de bancos centrais tomem decisões complexas e consigam contrabalançar objetivos potencialmente conflitantes. Aceitamos que nem sempre tomarão as medidas corretas. No entanto, certamente cabe a eles aprender com a maior crise financeira dos últimos 80 anos, em vez de continuar insistindo, indiferentes, em enfoques de política pública que fracassaram de forma tão estrondosa. (Tradução de Rachel Warszawski)
* Howard Davies, ex-presidente da Autoridade de Serviços Financeiros britânica, é presidente do Royal Bank of Scotland (RBS). Foi diretor da London School of Economics e vice-presidente do Bank of England. Copyright: Project Syndicate, 2015.