Falhas estruturais em construções do Minha Casa, Minha Vida elevaram o número de ações na Justiça que pedem indenizações à Caixa, resultando em milhares de processos surgidos nos últimos anos.
A CBIC (Câmara Brasileira da Indústria da Construção) estima o total atual em 90 mil ações. A Caixa Econômica Federal diz que só em 2024 foram 8.500, apenas considerando a faixa 1 do programa.
Nessa faixa, o teto de renda bruta mensal familiar é de cerca de R$ 2.850, e é possível conseguir um imóvel com subsídio de 95% do governo federal.
Nas ações por falhas, os beneficiários têm apontado problemas como fissuras e rachaduras nas paredes, caixas de esgoto que cedem e obras em que o teto é desnivelado. Esses problemas aparecem em perícias judiciais, que são feitas por profissionais designados pelos juízes.
No ano passado, a Caixa teve que pagar mais de R$ 92,4 milhões em ações judiciais envolvendo vícios de construção na faixa 1 do Minha Casa, Minha Vida, segundo o próprio banco informou após pedido via Lei de Acesso à Informação. Esse valor vem crescendo desde 2014 —quando foram pagos R$ 463 mil, em um ano que havia apenas 77 processos sobre o tema.
O banco afirma que, de 2014 a 2024, pagou R$ 310 milhões em indenizações.
A explosão nos valores levantou desconfianças do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) durante estudos sobre litigância predatória e abusiva nos tribunais do país. O tema passou a ser tratado no Conselho em reuniões para reduzir esses tipos de disputas judiciais e gerou rusgas entre advogados e juízes, que divergem sobre a forma como o tema é analisado.
À Folha o presidente do CNJ e do STF (Supremo Tribunal Federal), Luís Roberto Barroso, disse que estava em apuração a possibilidade de haver "uma indústria de indenizações por vícios nem sempre existentes na construção".
Advogados que têm entrado com esse tipo de ação, porém, manifestaram resistência à declaração de Barroso e dizem que o que existe é uma "indústria de construção predatória" no programa.
"O que seria litigância predatória? Seria fraude e má-fé, que os problemas não existiam, mas eu sempre falo aos magistrados em 'construção predatória', porque eles [construtoras] escolheram um público-alvo vulnerável, pessoas hipossuficientes, que é a faixa 1", diz o advogado cearense Flávio Pimentel, que ajuizou, segundo ele, 4.500 ações sobre o assunto.
"Eles não obedeceram a especificação mínima do programa do governo federal em alguns empreendimentos, e os erros são generalizados. É o mesmo do Ceará, do Maranhão, do Piauí ou do Rio Grande do Sul", afirma.
Em um dos casos, de Maranguape (CE), a beneficiária apontou uma série de problemas e a construtora chegou a fazer obras com o objetivo de corrigi-los. No entanto, as deficiências não foram sanadas.
Em um laudo pericial é apontado que o problema de fissuras nas paredes da residência "atingiu tanto a alvenaria de tijolos cerâmicos como a peça em concreto, da contra-verga, e não apenas o emboço ou a pintura".
"Foi informado que a construtora já havia realizado serviços de recuperação no ano de 2023 (...). Entretanto, foi constatado que o imóvel está tendo influência e surgindo manifestações patológicas na área das fundações", diz o laudo.
Esse problema aconteceria devido a problemas nas caixas de gordura, causando infiltração nas fundações e provocando uma série de fissuras no imóvel.
A Caixa negou em um primeiro momento o acesso aos dados totais de valores pagos em ações judiciais por vício de construção, alegando que "o fornecimento de valores pode comprometer a estratégia processual para o tratamento do referido acervo".
Houve recurso e, na segunda instância, o banco informou apenas os gastos com a faixa 1 do programa, aquela que tem mais subsídios e conta com recursos de fundos públicos.
A Caixa disse no pedido de Lei de Acesso à Informação que "tem atuado na defesa das ações judiciais que alegam vícios construtivos em imóveis construídos por meio do MCMV em qualquer das faixas do programa".
A instituição financeira afirma que tem dialogado com o Judiciário demonstrando "a preocupação com os recursos públicos envolvidos, no sentido de que, se forem comprovados vícios, os mesmos devem ser reparados preferencialmente pela construtora no mesmo processo".
O banco diz que os beneficiários do programa contam com o canal "De Olho Na Qualidade", criado em 2013, para registro de reclamações e envio às construtoras responsáveis para atuação.
"Caso a construtora não solucione os problemas de sua responsabilidade, ela passa a ser incluída em cadastro restritivo junto ao banco, ficando impedida de operar com o Fundo de Arrendamento Residencial [FAR]. Nesse caso, o FAR contrata uma nova empresa para realização dos reparos", diz.
A Caixa diz que "tem atuado na defesa das ações judiciais que alegam vícios construtivos em imóveis construídos pelo Minha Casa, Minha Vida".
"Por meio de ações institucionais, o banco tem levado ao Poder Judiciário a preocupação com os recursos públicos envolvidos, no sentido de que, se forem comprovados vícios construtivos, eles devem ser reparados preferencialmente pela construtora no mesmo processo."
A CBIC aponta que na existência de vícios construtivos reais e comprovados, a construtora e/ou a Caixa têm o dever de legal de reparar.
"A construção é uma atividade feita a céu aberto, manual, podem acontecer coisas aí e por isso tem normas legais de garantias e responsabilização", diz o vice-presidente jurídico da entidade patronal, Fernando Guedes.
"O que nos preocupa são ações temerárias, nas quais muitas vezes o dano não existem de fato e se baseiam em laudos falsos", prossegue.
Há casos, diz Guedes, em que o dono do imóvel nem sequer sabia que era parte de uma ação do tipo e descobria a existência com a chegada do perito na sua residência.
"Muitas vezes na ação quando construtora identifica problema no imóvel e propõe fazer reparos necessários, 99% das vezes esse acordo é recusado porque as ações visam somente as indenizações em dinheiro", afirma.
Para ele, o ideal seria obrigar primeiro a utilização de uma via administrativa com a Caixa e a construtora para sanar o problema. Caso isso não resolva a questão, aí sim o caso é levado ao Judiciário.