Estudos apontam que o Minha Casa Minha Vida criou novas periferias, com habitacionais erguidos em áreas afastadas, com pouca infraestrutura e carência de serviços públicos, como escolas e postos de saúde. A situação foi alvo de uma auditoria operacional realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e um estudo da Fundação Getúlio Vargas.
Pernambuco está entre os dez estados que menos entregaram os habitacionais prometidos pelo Minha Casa Minha Vida, segundo dados do Ministério da Integração. O maior programa de habitação popular da história do Brasil completou uma década e, das 200.683 moradias contratadas no estado, 136.204 ficaram prontas, o que corresponde a 67,8%. Na Mata Sul, ainda há vítimas das enchentes aguardando imóvel.
Quando o conjunto habitacional Fazenda Suassuna, no bairro da Muribequinha, em Jaboatão dos Guararapes, foi entregue, em 9 de novembro de 2018, as 1.440 famílias beneficiadas pensaram que, finalmente, se veriam livres da rotina de viver em moradias precárias. O sonho da casa própria, porém, logo ganhou contornos de pesadelo.
De acordo com moradores, os residenciais foram entregues sem água e luz. Hoje, cinco meses depois, ainda sofrem com quedas de energia elétrica e falta d’água. Os prédios ficam em uma área de difícil acesso, no meio do nada, cercados de barro e mato. Não há escola, posto de saúde ou comércio local.
“Antes eu morava numa invasão. Depois passei para o auxílio-aluguel. Quando vim para cá, pensei que teria minha casa própria. Mas aqui é muita dor de cabeça. É longe de tudo. E só tem um micro-ônibus para a gente, mas que demora uma hora ou até mais para passar”, reclama a dona de casa Jane Albuquerque, 41 anos, que mora no local com o marido e dois filhos, um dos quais autista.
Análise do TCU - A auditoria do TCU em 19 mil moradias espalhadas em 10 empreendimentos no país apontou que nove deles foram implantados em áreas carentes de serviços públicos básicos, como como escolas, creches, postos de saúde, transporte público, comércio local e segurança pública.
A vistoria feita pelo TCU revelou ainda que dois conjuntos habitacionais não contavam com água potável, dois tinham iluminação pública nula ou deficiente e um sofria com destinação inadequada de esgoto.
A auditoria resultou em determinações e recomendações “para induzir uma maior integração entre políticas públicas sob a responsabilidade de distintos órgãos da União e criar mecanismos para garantir que os entes subnacionais cumpram com seus compromissos firmados, no tocante à disponibilização dos serviços públicos sob sua responsabilidade”.
Morar longe - O estudo “Morar Longe: o Programa Minha Casa Minha Vida e a expansão das Regiões Metropolitanas”, realizado pelo Instituto Escolhas e pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), publicado no início deste ano, concluiu que o programa de habitação popular contribuiu para a expansão das metrópoles e para o agravamento de seus problemas. E não resolveu a questão da precariedade habitacional.
“A terra custa menos em locais mais afastados por conta do custo de transporte, mas também pela falta de serviços urbanos”, afirma o estudo. “O que observamos é que o PMCMV aparentemente não está melhorando nem a localização nem a oferta de serviços dos mais pobres”, acrescenta o documento. “Morar longe de fato reduz as oportunidades das famílias, o que pode levar a uma armadilha da pobreza”, complementa.
O habitacional Fazenda Suassuna é um exemplo clássico. Não há escola pública no bairro. Os dois colégios mais próximos são a Escola Municipal Dr. Maurício Martins de Albuquerque, no centro de Jaboatão, e a Escola Municipal Judith Figueiroa, em Muribeca dos Guararapes. Após muita reclamação, a prefeitura disponibilizou transporte escolar para os alunos. Nem todas as crianças do local, porém, conseguiram vaga.
O posto de saúde mais próximo fica em Vila Rica. Os moradores precisam caminhar por quase uma hora para tentar atendimento médico. No conjunto, há 31 crianças nascidas com microcefalia. As mães precisam ir ao Recife para dar sequência ao tratamento dos filhos.
“Deram a casa, mas o kit veio incompleto. Brinco que aqui é o Minha Casa Meu Aperreio”, diz a cozinheira desempregada Alexsandra Maria Oliveira, 40 anos.
Alexsandra vive com o marido, o auxiliar de carga e descarga Élcio Eufrásio, e um dos três filhos. Moram no conjunto residencial Paulo Freire e têm um cachorro chamado Bolsonaro. Contradição, para eles, é dar casa e não dar infraestrutura.
“Agradeço a Deus por terem dado minha casa. Foi uma alegria muito grande quando ligaram dizendo. Mas aí vieram as complicações. Se bate uma chuva lá no Uruguai, aqui já cai a energia”, lamenta.
O apartamento foi entregue com falhas de infraestrutura. Élcio, que também é marceneiro, pedreiro e eletricista, teve trabalho para deixar a casa arrumada. Na parede do banheiro, ainda é possível ver o reboco emendado. É que o chuveiro foi instalado com o registro invertido. Não pingava uma gota d’água.
A construtora Usina de Obras, responsável pelo residencial Paulo Freire, um dos conjuntos que integram o habitacional Fazenda Suassuna, está construindo outro residencial ao lado. A placa avisa que o prazo de término é 30 de maio deste ano. Pelo andamento das obras, não deve ficar pronto na data estipulada. Não há, no entorno da Fazenda Suassuna, nenhuma construção de escola ou unidade básica de saúde.
Mulher - O artigo 35 da lei federal número 11.977, de 07 de Julho de 2009, que instituiu o programa Minha Casa Minha Vida, é claro: “Os contratos e registros efetivados serão formalizados, preferencialmente, em nome da mulher”. O antropólogo norte-americano Russell Parry Scott, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e estudioso do assunto, avalia que o maior programa de habitação popular do Brasil contribui para a independência feminina.
Segundo ele, programas anteriores colocavam o homem como proprietário das moradias. Era o caso, por exemplo, do Programa de Erradicação da Sub-habitação (ProMorar), criado em 1979, e outros financiados pelo Banco Nacional da Habitação (BNH), que funcionou entre 1964 e 1986.
“Houve uma mudança histórica. Antes, quando você era inscrito em um programa de habitação do governo, quem ganhava o título era o homem. Agora, no Minha Casa Minha Vida, a casa é da mulher. Ela não precisa mais se segurar no marido para ter uma casa. Isso ajuda a empoderar a mulher. Não existe mais uma dependência conjugal. O espaço é delas”, analisa Parry Scott.
Desde 2012, após medida provisória assinada pela então presidente Dilma Rousseff, o Minha Casa Minha Vida prevê que mulheres separadas podem adquirir um imóvel mesmo sem a assinatura do ex-companheiro ou quando não houver divórcio judicial. A exceção se dá quando o pai ganha a guarda exclusiva dos filhos.