As cerca de 500 demissões realizadas pelos unicórnios —companhias que valem pelo menos US$ 1 bilhão-- Quinto Andar, Loft e Facily neste ano levantaram dúvidas sobre o desempenho das startups, após anos marcados pela farta oferta de capital para esses projetos. Seria um sinal de crise?
Profissionais de empresas e de fundos ouvidos pelo UOL dizem que as demissões podem ser um sinal de tempos mais difíceis, mas descartam a palavra crise para caracterizar esse momento. Segundo eles, as 76 rodadas de investimento nas startups, que receberam R$ 6,4 bilhões apenas no primeiro trimestre deste ano, mostram que os investidores continuam com disposição de oferecer capital para esses negócios.
Mas o aumento dos juros em todo o mundo os deixou mais seletivos na hora de colocar dinheiro nas startups, de um lado. De outro, faz com que as empresas precisem focar mais em resultados —vendas e lucros— do que no ritmo de crescimento.
Demissões para melhorar margem de lucro
As startups estão usando a busca por ganhos de eficiência como instrumento para melhorar a margem de lucro, ou seja, aumentar o tamanho das receitas em relação aos custos. E, para cortar despesas, algumas delas recorrem a um método bem tradicional da administração: demitir funcionários.
Quinto Andar, Loft e Facily dizem que as demissões não significam crise, mas sim ajustes após aquisições para evitar sobreposição de funções, ou então ajustes operacionais.
Loft: A plataforma de compra, reforma e revenda de imóveis diz que cortou 161 pessoas porque havia mais de uma pessoa fazendo a mesma coisa na área de crédito do Grupo Loft, que havia absorvido o time da InvestMais, em 2020, e depois assumiu a operação da CrediHome, em setembro passado.
Os desligamentos se concentraram na CrediHome by Loft, novo nome da área de crédito da Loft, disse a empresa em nota enviada ao UOL. Segundo ela, o quadro de funcionários total segue crescendo —passou de 1.010, em setembro para 1.270, hoje.
A empresa diz que o programa de parceria com grandes imobiliárias, iniciado em São Paulo e Porto Alegre, aumentou o portfólio da operação em mais de 25% no último trimestre, elevando o total de apartamentos ofertados na plataforma para mais de 45 mil.
E a área de crédito do grupo fechou o primeiro trimestre deste ano com R$ 1,6 bilhão movimentado e 5.200 contratos de financiamento imobiliário, alta de 75% sobre o mesmo período do ano passado.
Quinto Andar: Na líder em aluguel e venda de imóveis, as demissões atingiram 4% do universo de 4.000 vagas, disse a empresa. Segundo o cofundador e CEO, Gabriel Braga, a movimentação foi uma antecipação aos sinais que a companhia observou no mercado. Ele afirma que o aumento da inflação, dos juros e das incertezas no Brasil e no mundo levaram a uma desaceleração do ritmo de crescimento de vários mercados e maior escassez de capital.
Diante desse cenário, apesar de termos uma situação de caixa privilegiada e um modelo de negócio consolidado, antecipamos ajustes no dimensionamento dos nossos times, estrutura de custos e priorização de projetos, buscando um crescimento mais eficiente e preservação de caixa.
Gabriel Braga, cofundador e CEO do Quinto Andar
Facily: Na plataforma que atua como um hipermercado digital de compras coletivas, a lista de demissões atingiu 96 pessoas. Restaram 900 funcionários. A diretora sênior de recursos humanos da empresa, Mariana Adensohn, diz que o objetivo da companhia é atender o público que está localizado na base da pirâmide, como as classes C e especialmente as classes D e E.
Hoje, 72% da população brasileira é encontrada nessa base, e a Facily já conseguiu atender mais de 10 milhões de pessoas e está crescendo dia após dia. Ou seja, a empresa está apenas se reestruturando para atender ainda melhor esse nicho.
Mariana Adensohn, diretora de recursos humanos da Facily
Tem dinheiro, mas fundos estão mais seletivos
Gestores de fundos de venture capital dizem que as demissões e ajustes nas startups que atuam no Brasil representam um momento mais difícil que os anos de farta oferta de dinheiro. Eles apontam que os números de investimento este ano mostram que os investidores continuam colocando dinheiro nos negócios, embora de forma mais seletiva.
No primeiro trimestre deste ano, foram realizadas 76 rodadas de investimento em startups no país, que somaram R$ 6,4 bilhões. O valor em reais é inferior ao apurado em igual período de 2021, mas o número de aportes é maior.
No ano passado, houve uma "explosão de investimentos", quando os critérios adotados não seguiram o histórico padrão, e as avaliações dos indicadores operacionais de sucesso foram menos criteriosas, diz o presidente da Associação Brasileira de Startups (Abstartups), Luiz Othero.
Hoje, estamos vivendo um cenário diferente. Os investidores estão buscando menos riscos, a partir desses critérios.
Luiz Othero, diretor executivo da Abstartups
O mercado mudou, e a janela está menor. Ficamos mais seletivos e demoramos mais para investir. Mas há dinheiro para boas empresas.
Renato Valente, sócio da Iporanga Venture
Busca por mais eficiência
O aumento da taxa de juros faz com que gestores de fundos busquem reequilibrar carteiras, dizem executivos do setor.
Segundo Gustavo Gierun, principal executivo da Distrito, plataforma de dados e consultoria de startups, isso significa direcionar parte do dinheiro disponível no mercado para outros ativos, desacelerando o ritmo de oferta de capital para novos fundos e rodadas no mercado de tecnologia.
Empreendedores precisam provar capacidade de crescimento e execução em condições de restrição de capital. Esses ajustes nos times são naturais para adequar as empresas à nova realidade.
Gustavo Gierun, CEO da Distrito
Como você tem um capital indo um pouco mais para os ativos tradicionais por causa dos juros elevados, é preciso que a startup encontre formas de remunerar mais o investidor.
Amure Pinho, fundador da plataforma Investidores.VC
Como juros altos atrapalham startups
Para entrar em operação e, no futuro, quem sabe, virar unicórnio, uma startup precisa atrair dinheiro de investidores dispostos a financiar o projeto.
É uma operação de risco, porque a empresa pode quebrar e o projeto pode não dar certo. Por isso, o investidor só coloca capital na startup se a taxa de retorno projetada for muito maior que o rendimento dado por uma aplicação sem risco, como a renda fixa, por exemplo.
Se a renda fixa começa a entregar um rendimento maior —por causa dos juros mais altos— a startup também precisa aumentar a promessa de retorno. Para isso, a empresa tem que obter lucros maiores, seja com avanço de receitas ou com corte de despesas.
O ambiente de juros altos impacta mais startups que estão mais alavancadas, diz o sócio da Iporanga Venture, Renato Valente, que investiu em 29 startups, como Loggi, Buser e Quero Educação.
São startups que foram avaliadas de maneira muito otimista no momento em que os juros estavam em patamares historicamente baixos e havia oferta abundante de capital por parte de fundos de investimento.
Agora, com juros elevados, as despesas se tornam um desafio para alguns negócios se eles não estão entregando uma taxa de retorno adequada ao novo cenário, diz.
Se uma empresa está queimando muito caixa, ela precisa fazer ajustes. - Renato Valente, sócio da Iporanga Venture
Matéria publicada em 16/05/2022