A queda de braço entre o banco Santander e a incorporadora Viver sobre o processo de recuperação judicial da empresa vem sendo acompanhada de perto pelas demais instituições financeiras. O resultado da discussão entre a companhia e o banco tem potencial de colocar em xeque o desembolso de novos recursos para o financiamento habitacional.
O que está em discussão é um dos mais importantes instrumentos do crédito imobiliário brasileiro: o patrimônio de afetação. Criado por uma medida provisória em 2001 e transformado em lei de 2004, o patrimônio de afetação tem a função de proteger os compradores de imóveis em caso de quebra da construtora. Todos os ativos e passivos de um projeto não podem se misturar às finanças da incorporadora.
O instrumento faz com que, nas situações em que a incorporadora tiver problemas, os recursos vinculados a determinados empreendimentos sejam usados para garantir a execução das obras. Ou seja, não se misturam às demais obrigações da incorporadora. Essa foi uma das reformas que ajudou na arrancada do crédito imobiliário no país nos últimos anos. Em agosto, o financiamento a imóveis somava R$ 597,3 bilhões, sendo R$ 72,3 bilhões para empresas.
Santander questiona plano da incorporadora de consolidar todos os seus empreendimentos em um único processo No plano de recuperação apresentado pela Viver, a companhia propôs a consolidação de todas as suas sociedades de propósitos específico (SPE) em um único processo de recuperação judicial. Dentro dessas SPEs ficam os empreendimentos imobiliários da empresa, que são, em sua maioria, financiados pelos bancos em regime de patrimônio de afetação. Apesar de o uso do patrimônio de afetação não ser obrigatório, é prática comum no mercado. Ao todo, a companhia tem 64 SPEs.
O Santander, credor de duas dessas SPEs, questionou essa decisão da empresa. Segundo o Valor apurou, outros bancos, como o Bradesco, tendem a ir pelo mesmo caminho. Um executivo responsável pela área de crédito imobiliário de um grande banco vê o caso como emblemático. "Será o primeiro grande teste judicial para o patrimônio de afetação", diz. Nas contas dele, caso a tese da Viver prospere, há um aumento do risco para os bancos nas operações de financiamento habitacional, que passariam a consumir o dobro de capital que consomem hoje no balanço das instituições financeiras. O resultado disso é aumento de spreads e queda na disposição de emprestar.
Se todos os projetos forem colocados em um bolo só, o patrimônio de afetação será jogado por terra", diz o sócio da área de negócios imobiliários do escritório TozziniFreire Advogados, Pablo Meira Queiroz. Para o especialista, no atual cenário de escassez de financiamento imobiliário, o impacto de uma decisão judicial a favor do agrupamento das SPEs deve levar ao aumento das taxas de juros para incorporadoras e consumidores.
"O patrimônio de afetação foi criado exatamente para poder blindar os projetos de crédito imobiliário", afirma o vice-presidente de um dos principais bancos de crédito imobiliário do país.
Outra instituição financeira de grande porte aposta na vitória do Santander. "O dinheiro é dos compradores dos imóveis, não da empresa", diz um alto executivo.
A preocupação dos bancos é que, ao incluir todas as SPEs em uma só recuperação judicial, projetos bons acabem se misturando a empreendimentos não tão viáveis, reduzindo o valor que um determinado financiador tem a receber. A viabilidade dos projetos é um dos itens avaliados pelos bancos na hora de conceder o crédito. "O crédito feito para empresa tem outro risco, outras características e outros prazos que o feito para o projeto", diz uma fonte.
Dívidas tomadas por holdings não-operacionais também podem consumir os valores a receber de quem financiou projetos específicos, via SPEs. É por isso também que instituições financeiras que fizeram mais desembolsos a holdings podem ter um entendimento contrário ao do Santander. Um banco ouvido pelo Valor, por exemplo, considera que a atividade central das incorporadoras está nas SPEs e que, portanto, todos os projetos devem fazer parte de uma recuperação judicial.
Casos recentes dão algum grau de tranquilidade aos bancos que defendem a separação. Na recuperação judicial da construtora OAS, por exemplo, o Banco do Brasil conseguiu separar do bolo dos demais credores um empreendimento da construtora no Estado de São Paulo. O banco financiou a construção do condomínio em regime de patrimônio de afetação.
A lei que criou o patrimônio de afetação foi uma resposta a série de problemas do setor imobiliário brasileiro na década de 1990, que culminou na falência da Encol, uma das maiores construtoras do país à época, que paralisou centenas de obras país afora. O processo levou anos para ser resolvido.
O Valor apurou que, no entendimento da Viver, o patrimônio de afetação só deve ser apartado em caso de falência da companhia, mas não em situação de recuperação judicial. Isso porque, segundo fonte próxima às negociações, o recurso da recuperação judicial busca, justamente, evitar que a empresa seja liquidada.
Segundo Pablo Queiroz, do TozziniFreire, a lei do patrimônio de afetação menciona apenas casos de falência e é "omissa" em casos de recuperação judicial. Ele defende, porém, que a lei também valha nas recuperações.
O Santander é credor de um empreendimento concluído e de outro ainda em obras, ambos em Nova Lima (MG). No projeto em construção, a dívida da Viver com o banco é de R$ 30 milhões, e ainda faltam R$ 70 milhões de dívida a incorrer, diz uma fonte. Normalmente, o banco não libera todo o financiamento de obras de uma vez. Vai liberando recursos na medida em que a obra é contratada.
Segundo fonte que participou das negociações, o pedido de recuperação judicial da Viver foi a saída encontrada pela companhia após a maior parte dos bancos credores não ter aceitado ativos em pagamento de dívidas. Desde julho, a Viver sinalizou aos bancos que pediria recuperação judicial, diz o interlocutor.
Pesaram também para o pedido de recuperação judicial as ações de execução judicial ajuizadas contra a Viver pelo Santander e pela Swiss Re Corporate Solutions Brasil Seguros, pois havia o risco de vencimento antecipado de todas as dívidas.
Nos últimos anos, a incorporadora focou sua atuação na entrega dos projetos já lançados, na redução do endividamento, principalmente corporativo e no corte de despesas gerais e administrativas. A aposta foi que a conclusão de obras estimularia as vendas e possibilitaria comercializar as unidades por preços superiores aos das unidades em construção, o que resultaria em repasse de mais recebíveis para os bancos e geração de caixa.
A piora do cenário macroeconômico e o aumento dos distratos fizeram a velocidade de vendas e repasses ser inferior ao esperado. Esses fatores, combinados a elevados custos com a dívida e ao aumento dos processos judiciais contra Viver levaram a companhia à apresentar, no fim de junho, patrimônio líquido negativo em R$ 348,09 milhões.
Procurada, a incorporadora não se manifestou sobre o caso.