Há 116 anos na esquina da avenida Marechal Floriano com rua Uruguaiana, a tradicional Casa Paladino é foco de resistência entre as portas fechadas e prédios abandonados do Centro do Rio. “A meta se tornou resistir, mas não sabemos até quando vai valer a pena”, diz o gerente Antônio Silva, há 26 anos no restaurante-armazém que ganhou fama pelos fartos omeletes e sanduíches. Pontos igualmente centenários, como a Casa Villarino e a charutaria Syria, não resistiram e encerraram atividade.
O esvaziamento do centro do Rio, em crise econômica desde 2015, foi agravado pela pandemia e a passagem repentina ao trabalho remoto, que permanece. A região tem hoje percentual de vacância próximo a 60%. São quase 7 mil casas, sobrados e prédios inteiros vazios, diz Claudio Hermolin, presidente do Sindicato da Indústria de Construção do Estado (Sinduscon-RJ). A situação ligou o alerta no poder público, e a Prefeitura lançou, em julho de 2021, o Reviver Centro, programa de fomento a empreendimentos residenciais e revitalização da área. O projeto colhe frutos rapidamente para os padrões da indústria de construção civil, de prazos médios e longos.
Em nove meses de vigência, foram dois lançamentos e requisição de 15 licenças de construção, das quais oito foram emitidas, informa a secretaria municipal de Planejamento e Urbanismo. Até o momento, serão quatro condomínios levantados do zero e 11 conversões de prédios comerciais para residenciais, com total de 1.719 unidades programadas. O número supera as pouco mais de 1,4 mil unidades residenciais licenciadas no Centro nos últimos dez anos. Em 20 anos, somente 0,2% do volume de produção residencial da cidade se deu na região, diz a prefeitura.
Em nove meses, programa apresenta dois lançamentos e oito pedidos de licença de construção concedidos
A meta inicial é aumentar em 15% da população do Centro até 2024. O Instituto Pereira Passos aponta 42 mil moradores na região, que vai das costas da zona portuária, a partir da Estação Central do Brasil até o sopé de Santa Teresa: o centro propriamente dito, a Lapa e o entorno da Praça da Cruz Vermelha. Nas contas do secretário de Planejamento e Urbanismo, o urbanista Washington Fajardo, as unidades já programadas devem atrair pouco mais de 4 mil novos moradores, se considerada a média de 2,5 pessoas por residência. Ele comemora os números, mas diz que transformação perene da região só deve acontecer em 20 anos, se o projeto for continuado.
Implementado na pandemia e quando o Estado começava a esboçar tímida saída da crise dos anos anteriores - apoiado em receitas patrimoniais como as do petróleo - o Reviver Centro tem dado resultado por haver reconhecida infraestrutura de transportes, serviços e cultural na região, mas principalmente porque são “agressivos” os incentivos da lei que o viabilizou, dizem especialistas ouvidos pelo Valor.
As novas regras, com duração de dez anos, trazem benefícios em três eixos principais. O mais relevante para atrair incorporadoras foi atrelar aos projetos a concessão de créditos construtivos em outras áreas da cidade outrora limitadas por lei. Empresas que constroem no Centro ganham autorização para aumentar a altura de prédios até o gabarito mais alto nos valorizados bairros de Ipanema, Copacabana e Leme, na zona sul, além de Tijuca e outras partes da zona norte. Cada 100 m2 construídos no Centro, dá direito a outros 40 m2 nessas outras áreas - ou até 60 m2 se o projeto dedicar 20% das unidades à locação social, pessoas da fila habitacional da prefeitura.
Segundo Fajardo, o mercado conhece bem as oportunidades e já disputa as autorizações atreladas, que contam cerca de 60 oportunidades em Ipanema, 120 em Copacabana e menos de dez no Leme. Para fazer uso desse “bônus”, as empresas não precisam ser donas de terrenos nesses locais. Podem se associar ou mesmo negociar a vantagem com outros atores.
Em paralelo há incentivos fiscais, como extinção de dívida ativa de IPTU, sua isenção durante a obra e períodos depois, além de isenção do ITBI na primeira venda. Completam o pacote a desregulamentação do retrofit, que facilitou as regras para a conversão de prédios comerciais em residenciais. “Tudo isso foi necessário para quebrar a inércia do setor imobiliário no Rio, avesso ao retrofit e muito focado nas zona Oeste e parte da zona Sul”, diz Fajardo.
Um dos dois empreendimentos lançados que gozarão dessas vantagens é o Cores do Rio, na região da Cruz Vermelha, que já tem 85% de suas 121 unidades vendidas. Os preços variam entre R$ 280 mil e R$ 430 mil. “Muitos investidores compraram, mas também tem gente migrando da Zona Oeste e Zona Norte para morar mais perto do trabalho”, diz Flávio Wrobel, diretor da W3 Construtora.
Em que pese o efeito pandemia, o Centro concentra mais da metade das carteiras assinadas do Rio. São cerca de 800 mil empregos formais de alguma forma ligados à região, diz a Prefeitura. “Fala-se tanto em sustentabilidade, mas não tem nada mais sustentável do que revitalizar uma área da cidade com infraestrutura pronta”, diz Wrobel.
Outro lançamento é o Presidente Vargas 1.140, o segundo residencial da maior via do Centro, a Presidente Vargas, desde a construção do icônico “Balança mas não cai”, em 1945. Serão 18 andares com 360 unidades a partir de R$ 276 mil, no formato estúdio ou dois quartos. As incorporadoras miram o público de jovem trabalhador ou universitários, que buscam espaços menores dotados de facilidades.
A conversão em residências dos hotéis que definham sem demanda corporativa também está na mira. O maior projeto é do Atlântico Tower (ex-hotel São Francisco), que pertence ao fundo de investimento Opportunity. Ainda em fase de licenciamento, o empreendimento será retrofitado para receber 214 apartamentos. A expectativa é de início das obras no final do primeiro semestre, com investimento de R$ 35 milhões. O preço médio das unidades será de R$ 190 mil.
Por trás da onda de negócios, está o condão urbanístico de ocupar com moradores o vazio deixado por trabalhadores e reorientar, para dentro da cidade, a expansão imobiliária. Segundo Fajardo, trata-se de adensar área com infraestrutura pronta e “trocar um Centro de oito horas por dia cinco vezes na semana por outro ativo por 24 horas todos os dias da semana”.
Seria sopro de vida ao comércio da região. Após 100 dias fechada em 2020, a Paladino passou a receber 30% da clientela habitual e agora, com o arrefecimento da pandemia, estacionou em 60%. “O Centro já vinha definhando. Existe falta de poder público, degradação e, ao mesmo tempo, altos custos de aluguel e IPTU. A pandemia foi golpe de misericórdia. Mais da metade das lojas a nossa volta fecharam”, diz Silva, o gerente.
Os mesmos problemas são listados por empresários e comerciantes reunidos na Aliança Rio, que tem como objetivo mapear problemas e cobrar soluções do poder público. “A maior dificuldade é a população de rua e a conservação do espaço público, como calçadas, bueiros e iluminação. Quanto mais largado o entorno, mais insegura a pessoa se sente”, diz Fernando Kalache, empresário que integra a iniciativa e mantém um escritório de advocacia no Centro.
Questionado, Fajardo admite os problemas e diz que a prefeitura tem um sub-programa de “áreas de excelência”, que fatiou a região em trechos para pente fino de zeladoria, como conserto de calçadas e iluminação, seguido de reforço na presença da Guarda Municipal. A ação se irradia do eixo da avenida Rio Branco e já alcançou seis áreas. Todas recebem visitas mensais com representantes de autarquias, ele inclusive, e trabalho permanente. Sensação maior de segurança, defende, virá a reboque da ocupação. A lógica, diz, é que o investimento público em ações como essa e renúncias fiscais induza e garanta a atuação do privado na direção do plano diretor da cidade, de adensamento de territórios consolidados
Matéria publicada em 18/04/2022