"Nada é mais poderoso do que uma ideia cujo tempo chegou." A frase do pensador francês Victor Hugo reflete bem o que securitização da dívida ativa representa para o modelo brasileiro de execução dos créditos que a Fazenda Pública tem a receber. Aos leitores menos familiarizados com a contabilidade pública pode soar estranho atribuir o termo "dívida" a uma rubrica que o setor público tem a receber. E exatamente por isso a contabilidade vincula o outro termo: "ativa".
Contados todos os governos brasileiros, há uma estimativa de que ao final de 2015 já passava de R$ 3 trilhões o que eles tinham a receber, dos quais cerca de R$ 2 trilhões pelo governo federal, mais de R$ 700 bilhões nos Estados e mais de R$ 300 bilhões nos municípios. Mesmo excluindo provisões de perdas de metade, ainda restam R$ 1,5 trilhão ou 26% do PIB de créditos a receber pelos governos.
Pior que a enorme magnitude de crédito é quanto efetivamente se recebe. A própria Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) revelou que o índice de sucesso anual na recuperação destes créditos é de irrisório 1%. Também divulgou que execuções fiscais abaixo de R$ 1 milhão representam 97,5% dos processos judiciais e adotou medidas para suspender sua cobrança. Paradoxalmente, a corporação da PGFN postula na Justiça 60 dias de férias anuais, por analogia aos magistrados, além do antigo pleito para que seja permitido o exercício da advocacia privada aos procuradores. Ou seja, enquanto a dívida cresce sem parar, os atuais responsáveis por cobrá-la querem trabalhar menos.
Outra faceta dessa questão é o estrangulamento que provoca no Judiciário. Conselho Nacional de Justiça (CNJ) conta que execuções fiscais na Justiça Federal de primeira instância respondem por 54% do estoque total de processos. E no âmbito estadual, 37%, segundo o CNJ. De acordo com o IPEA, apenas 2,6% processos de execuções federais resultam em leilões de bens penhorados e as principais causas de extinção são a prescrição ou decadência.
Não resta dúvida sobre a falência dos meios governamentais de cobrança do crédito tributário e por isso se torna necessário discutir alternativas, como adotadas em outros países e mesmo empresas. É o caso da securitização dos haveres, inclusive da dívida ativa tributária, de modo que sejam transformados em receitas recebíveis e como tal vendidos para terceiros, que se tornariam os cobradores dos devedores. Ainda que com deságio, a venda desses créditos poderia gerar ganhos consideráveis e no curto prazo para os diferentes governos brasileiros e os ajudar a enfrentar a grave crise fiscal.
Essa medida tem dois modelos possíveis. No primeiro, ocorre a venda apenas dos direitos creditórios, conferindo-se caráter autônomo aos recebíveis, sem alienação dos créditos inscritos e sem alteração do seu titular (como já foi feito em alguns Estados). No segundo, a Fazenda pública efetivamente aliena um crédito futuro sob deságio, passando a correr a cobrança por conta e risco do comprador (que, naturalmente, vai despender mais esforços na cobrança, além de poder transigir, transacionar etc).
O segundo modelo é o mais oportuno e adequado face a baixa eficiência arrecadadora pois implica transferir a prerrogativa de cobrança das respectivas procuradorias para o particular adquirente do crédito. Guardadas as devidas peculiaridades, prática semelhante foi adotada recentemente nos Estados Unidos, com a possibilidade de cobrança privada do devido ao Fisco nacional (Private Debt Collection Program, the Fast Act). Se tais deficiências foram constatadas no país mais rico do mundo, que dizer do Brasil.
A securitização necessariamente precisa ser regulamentada, entre outros motivos, para mitigar alguns riscos inegáveis que a operação enseja. Há um risco de baixa liquidez decorrente do mercado secundário para os títulos a serem emitidos caso sejam vistos como pouco atrativos para negociação. Há risco de seleção adversa de portfólio, no caso de serem selecionados apenas os ativos bons e os de menor qualidade serem mantidos cobrados pelo Fisco.
As experiências pontuais de securitização já realizadas por alguns governos locais se depararam com problemas que ora podem ser enfrentados. Para os equacionar, será preciso aprovar uma lei nacional e já existem projetos de lei tramitando no Congresso, que deveriam ser objeto de maior atenção e apoio, a começar pelos governos.
O debate técnico e franco pode contribuir para dissipar dúvidas e definir o tratamento fiscal e contábil mais adequado. Uma nova lei apressaria a efetiva adoção da medida que pode ser um instrumento crucial para se combater a crise fiscal, uma vez que permitirá aumentar a arrecadação sem majorar a carga tributária e sem continuar a penalizar os bons contribuintes que pagaram em dia os seus impostos.
Portanto, o ideal é transferir para a cobrança privada o maior volume possível de créditos a receber de todos os governos, dos diferentes níveis, negociados pelo maior valor possível e antecipados para os cofres públicos o mais rápido possível.
Enfim, diante do enorme fracasso na efetiva cobrança de créditos pelos cobradores dos governos e do alto custo de funcionamento dessa máquina seria mais eficiente permitir que governos possam securitizar seus haveres, trilionários, e assim transferir os serviços de cobrança para a iniciativa privada. Legislação deve regular e definir com precisão a efetiva venda do crédito, com substituição do credor e transferência da prerrogativa de cobrança.
*Luiz Gustavo Bichara e José Roberto Afonso são, respectivamente, sócio de Bichara Advogados e conselheiro federal da OAB e economista, professor do IDP e pesquisador do IBRE/FGV.
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