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07/02/2016

Uso do FGTS é questionado

O Executivo pretende editar uma Medida Provisória (MP) que possibilitará o uso de parcela do FGTS como garantia nas operações de empréstimos consignados.

Simone Kafruni e Antonio Temóteo

Sem alternativas para tirar o Brasil da recessão, o governo insiste no modelo esgotado de estímulo ao crédito para tentar alavancar uma retomada do crescimento. A tacada mais recente, porém, acendeu o sinal de alerta nos especialistas, ao colocar na berlinda o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), uma das conquistas mais importantes dos trabalhadores e a última tábua de salvação dos milhares de brasileiros que estão perdendo os empregos.

O Executivo pretende editar uma Medida Provisória (MP) que possibilitará o uso de parcela do FGTS como garantia nas operações de empréstimos consignados. Conforme o Ministério da Fazenda, “a proposta tem potencial para desenvolver o crédito no setor privado brasileiro e deve diminuir a taxa de juros dessas operações”. Para advogados, representantes dos trabalhadores e empresários, contudo, o momento não podia ser pior, com aumento das taxas de desemprego e saques cada vez maiores do FGTS. Se aprovada, alertam os especialistas, a medida vai incentivar o endividamento.

A ideia do governo é que o trabalhador do setor privado possa utilizar sua multa rescisória, correspondente a 40% do saldo acumulado, e até 10% da sua conta vinculada ao FGTS para prestar garantia em operações de crédito consignado. Atualmente, a modalidade é mais viável para servidores públicos, aposentados e pensionistas porque a estabilidade da renda permite juros mais baixos.

“Com base no saldo atual do FGTS (R$ 342 bilhões), os 40% da multa por demissão sem justa causa e os 10% dos depósitos correspondem a R$ 170 bilhões. Se apenas 10% dos recursos forem dados como garantia, isso viabilizaria R$ 17 bilhões em crédito consignado para os trabalhadores do setor privado”, calcula o Ministério da Fazenda, que aposta numa redução dos juros praticados por conta da garantia.

O presidente do Instituto Fundo Devido ao Trabalhador, Mario Avelino, duvida da estimativa. “Hoje, os bancos cobram 41% em média de juros para operações com trabalhadores da iniciativa privada ante média de 21% a 26% dos demais, ou seja quase o dobro. Quem garante que os juros vão cair? Essa medida é um presente para os bancos”, diz.

Motivos - Avelino enumera vários motivos para ser contra a proposta do governo: “Vai reduzir muito pouco a taxa de juros, a maioria dos empréstimos consignados feitos por empresas para os empregados no regime CLT já tem como garantia 30% das verbas rescisórias; a população brasileira está em seu limite de endividamento; o consumo para movimentar a economia será insignificante; beneficiará apenas os bancos; e o dinheiro da multa de 40% sacado pelo trabalhador pode ser usado por ele de formas mais produtivas, como bem quiser”, lista.

Com tanta motivação, o instituto promete recorrer de todas as formas contra a medida, assim que for publicada. “Já temos contato com central sindical para entrar com Ação Direta de Inconstitucionalidade e nossa organização vai à Justiça, por meio de uma ação civil pública”, promete.

O advogado trabalhista Joel Gallo, sócio do escritório Souto Correa Advogados, concorda com Avelino sobre a medida estimular o endividamento. “Além disso, a multa de 40% é incerta, então só é possível contar com os 10%, o que deve manter os juros praticados pelas instituições financeiras altos. O governo quer estimular o crédito de qualquer forma e assegurar que os bancos recebam”, avalia.

No ano passado, quase todos os tipos de financiamento tiveram redução expressiva. Na média, os empréstimos recuaram 10,2% ante 2014, sendo que as modalidades de maior risco, como cheque especial e cartão de crédito, caíram 4,9%, enquanto as de menor, como o consignado, despencaram 23,4%. “A possibilidade de utilizar uma parcela do FGTS como garantia nas operações consignadas permitirá a substituição de dívidas caras por dívidas mais baratas, melhorando o perfil de crédito das pessoas físicas e reduzindo o comprometimento de sua renda”, justifica a Fazenda.

Apesar dos argumentos do governo, o presidente da Força Sindical, Miguel Torres, não aprova a medida. “Em princípio, somos contra porque vai endividar ainda mais o trabalhador e comprometer a sua rescisão, caso seja demitido”, opina. Claudio da Silva Gomes, representante da Central Única dos Trabalhadores (CUT) no conselho curador do FTGS, é voz dissonante. Para ele, a destinação de recursos do fundo para lastrear os empréstimos consignados é positiva, pois faz parte de um conjunto de medidas para aumentar o consumo, reaquecer a economia e fomentar a geração de empregos 

Defesa - Gomes assinala que nem todos os empregados do setor privado devem usar o crédito consignado com a aprovação da medida, mas aqueles que buscarem as operações terão acesso a menores taxas de juros. “Sem essa possibilidade, as pessoas continuarão tendo acesso a financiamentos com taxas elevadas e quando dispensados usam toda verba rescisória para pagar as contas. A proposta é boa porque diminui custos”, detalha.

Para Luigi Nese, presidente da Confederação Nacional de Serviços (CNS) e representante dos empregadores no conselho curador do FGTS, a proposta do governo de reverter os recursos do fundo em garantias para empréstimos consignados é um absurdo. Conforme ele, os bancos estão mais preocupados em cobrir os calotes e reduzir a taxa de inadimplência com o aumento do desemprego do que gerar postos de trabalho. “As pessoas devem ter liberdade para usar o dinheiro como querem e não para lastrear operações bancárias”, comenta.

Nese ressalta que para acabar com as diversas propostas de uso dos recursos do FGTS o governo deveria por fim as restrições de acesso aos recursos. Ele afirma que apresentou ao Executivo uma que permite aos trabalhadores ocupados sacar 50% do saldo no aniversário. Para ele, essa medida eliminaria a rotatividade do mercado de trabalho e os recursos seriam usados para pagar dívidas ou para o consumo. “Também defendemos alterar o indexador que remunera a poupança dos trabalhadores da Taxa Referencial (TR) para a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP)”, destaca.

“Não podemos esquecer que o momento é de desemprego. No ano passado, 1,5 milhão de brasileiros foram para a rua. Este ano, a estimativa é que mais 1 milhão perca o emprego”, lembra Avelino, do Instituto Fundo Devido. Com o aumento do desemprego, os saques do FGTS dispararam 14,83% em 2015. Conforme a Caixa Econômica Federal, responsável pela administração do fundo, as retiradas totalizaram R$ 99,1 bilhões e arrecadação líquida foi de R$ 14,4 bilhões. Pelos cálculos do presidente do Instituto Fundo Devido, se um trabalhador com R$ 10 mil no FGTS for demitido, recebendo mais R$ 4 mil de multa, e se tiver usado o fundo como garantia para um empréstimo, terá comprometido 35,71% da sua rescisão. “O banco vai levar R$ 5 mil”, diz.

Menos recursos - Outra preocupação é com a redução dos recursos do FGTS para financiamento habitacional, de saneamento e de infraestrutura urbana. A Caixa, banco responsável pela administração do FGTS, já restringiu o crédito imobiliário, sobretudo para a classe média. Em 2015, o fundo aplicou R$ 47,2 bilhões em habitação ante R$ 53,6 bilhões em 2014. Os recursos também foram menores para saneamento e mobilidade urbana.

Para o presidente da CSN, os recursos do fundo devem ser destinados somente para os investimentos em saneamento, para obras de mobilidade urbana e para construção de habitações, uma vez que essas medidas implicam benefícios para os trabalhadores. “Ainda defendemos que seja criada uma agência de projetos, com participação pública e privada para melhorar a qualidade das propostas apresentadas. Precisamos tirar da gaveta as melhores ideias e não destinar recursos para o setor bancário”, diz.

Para o presidente da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abraic), Renato Ventura, o comprometimento das finalidades do FGTS é preocupante. “Haverá um desvirtuamento grave. O estímulo ao crédito não se alinha com o propósito do fundo. Além disso, vai aumentar o envidamento das famílias, que já está alto. É uma medida que precisa ser muito ponderada”, alerta.

O presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção Civil (Cbic), José Carlos Rodrigues Martins, alerta que a intenção do governo de usar o FGTS para fomentar empréstimos consignados é um exemplo típico de como as políticas públicas são deturpadas com o passar dos anos. Ele destaca que os trabalhadores que ainda têm condições de buscar financiamentos estão cautelosos e preocupados com o futuro do país. Já os de baixa renda estão endividados e sem capacidade de honrar com novos compromissos. “Quando começam a inventar mil e uma utilidades para os recursos do fundo temos um problema. Ele foi criado para ser um mecanismo de poupança e para financiar investimentos”, relembra.

Martins ainda ressalta que as políticas do governo para incentivar determinados segmentos se mostraram ineficientes ao longo dos anos e um momento de retração o ideal é concentrar esforços em políticas que tenham o potencial para alavancar os investimentos dos mais diversos setores da economia. 

 

FONTE: CORREIO BRAZILIENSE ONLINE