"210 m², com muito espaço para o seu comércio, ideal para instalar drogaria, açougue, restaurante ou padaria", sugere o anúncio de aluguel de R$ 14 mil de um imóvel entre dois prédios em São Paulo.
Perto dali, o restaurante de uma família italiana que funciona no único sobrado que restou de pé entre empreendimentos agora aproveita o aumento do fluxo de clientes na rua da Bela Vista.
Casas que ficaram isoladas em um quarteirão tomado por prédios acabam trocando o passado de residência pelo uso comercial.
Enquanto a piora do trânsito, a perda de privacidade e o aumento do ruído costumam desanimar o proprietário que opta por não aceitar a proposta de compra de uma incorporadora, a transformação da rua pode ser uma boa oportunidade para quem pensa em instalar um negócio perto de grandes empreendimentos, mas quer evitar gastos com condomínio e limitação de espaço. O colunista da Folha e e engenheiro civil Claudio Bernardes reforça que não há uma regra dizendo que o imóvel que fica isolado entre prédios necessariamente irá perder valor.
"Muitas vezes, a decisão de ficar pode ser até positiva. O cotidiano de uma das maiores cidades do mundo é dinâmico e quando se tem vários edifícios na região, um imóvel com uso comercial pode até se valorizar, com um número grande de pessoas que criam demanda para uma série de serviços."
A agente de viagens Elen Souza, 34, é um exemplo disso. Ela costuma participar de eventos do setor no Shopping Frei Caneca e encontrou em um restaurante de rua, entre dois empreendimentos recentes, uma alternativa à praça de alimentação do centro de compras.
"Acaba sendo mais barato e o ambiente é agradável, é uma chance de ter comida saudável sem pagar demais por isso."
Os proprietários que escolhem alugar suas casas para fins comerciais, em vez de vendê-las para incorporadoras, têm rentabilidade mensal maior do que se optassem por aluguel residencial.
De acordo com o Índice FipeZAP Comercial de novembro de 2023, o retorno médio do aluguel de imóveis comerciais em São Paulo foi calculado em 6,36% ao ano, superando a rentabilidade esperada para o aluguel de imóveis residenciais (5,78% ao ano).
No entanto, além da adaptação arquitetônica, transformar um imóvel residencial em comercial requer alvará de funcionamento, e cada atividade comercial tem um fim específico.
Também é preciso considerar as regras de zoneamento do município, que determinam o que pode ser construído em cada rua e o tipo de uso (residencial, comercial ou industrial).
"O imóvel precisa ainda estar em região de zoneamento misto e obedecer a diretriz do município. Por exemplo, uma rua pode ter restaurante, clínicas de estética e não permitir um minimercado", afirma Pedro Serpa, sócio do S2GDC Advogados, especializado em direito imobiliário.
Em São Paulo, priorizar habitações próximas a corredores de ônibus e estações de metrô e trem foi uma das marcas do Plano Diretor de 2014. Uma revisão das regras foi aprovada em 2023.
Para quem opta por resistir às propostas das construtoras, a conservação da residência pode preservar parte da memória da cidade, mas a convivência com os novos vizinhos nem sempre é pacífica.
Em julho, a BBC Brasil contou a história de uma família que vive há cem anos em uma casa agora perdida entre prédios na Vila Mariana. "Das janelas dos apartamentos, jogam de tudo. Já jogaram absorvente, bituca de cigarro, embalagem de sabonete e de comida, garrafas", contou uma das moradoras.
Segundo especialistas ouvidos pela Folha, a construtora normalmente terceiriza a negociação por meio de corretores, que acabam funcionando como uma espécie de "olheiros" de terrenos com potencial para abrigar edifícios.
Eles entram em contato com os vizinhos para sondar se há interesse na venda, fazem a oferta e tentam garantir um conjunto de terrenos suficientes para o empreendimento.
"Se uma casa fica cravada no meio da quadra e só ela não foi comprada por não haver um acerto comercial, a empresa tem de procurar um projeto que seja viável sem aquele terreno", acrescenta Bernardes.
Em muitos casos, o proprietário até quer vender, mas o negócio empaca por falta de documentação do imóvel, diz o presidente executivo do Secovi-SP, Ely Wertheim.
Cerca de 60% dos imóveis do país têm alguma irregularidade, sendo a falta de escritura a mais comum, atingindo 40 milhões de propriedades. Sem o documento, o proprietário tem dificuldades em financiar, vender, transferir ou alugar.
"O projeto só é feito em cima de um terreno existente, que a empresa conseguiu adquirir. A engenharia e arquitetura permitem soluções para contornar até as situações em que a casa não vendida fica no meio da quadra", diz Wertheim.
O processo de verticalização, com o aumento no número de vendas de apartamentos na capital paulista nos últimos quatro anos se deu, sobretudo, em bairros das zonas sul, leste, oeste e central.
Segundo o Ranking da Demanda Imobiliária, da Loft, a Vila Andrade liderava as vendas de apartamentos, com 547 unidades, nos primeiros quatro meses de 2023, e o bairro já estava no topo da lista há quatro anos —um crescimento atribuído à expansão da Linha 5-Lilás do Metrô.
Em seguida, aparecem Tatuapé (478 apartamentos), Bela Vista (467), Sacomã (338), Perdizes (333) e Mooca (330). Os dados são compilados a partir do ITBI (Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis).
De 2019 a 2023, Tatuapé, Sacomã, Perdizes, Mooca, Jabaquara, Pinheiros e Santana subiram de posição na lista dos 20 bairros paulistanos com maior atividade imobiliária.
Wertheim diz acreditar que a revisão do plano diretor não deve trazer uma mudança significativa no universo de negociações de terrenos.
"Formar um terreno sempre leva muito tempo e envolve todo tipo de negociação, de oferta em dinheiro a permuta por unidades no futuro empreendimento. As empresas estão sempre a procura de boas oportunidades."